xmlns:b='http://www.google.com/2005/gml/b'xmlns:data='http://www.google.com/2005/gml/data' xmlns:expr='http://www.google.com/2005/gml/expr'> Vida Cristã: A Palavra Não Escrita - Poesia -

quarta-feira, 22 de março de 2017

A Palavra Não Escrita - Poesia -





































.

A Palavra não Escrita



Reproduzo, neste minifúndio virtual, o comentário ao meu livro de poesias, "A Palavra não escrita", realizado pelo amigo e irmão, o pr. Fábio Ribas, autor dos blog "Casal 20" e, também, do livro de poesias "A Trajetória do Indivíduo" entre outros (excelente, por sinal), que pode ser baixado gratuitamente na biblioteca de livros do "Poesia Evangélica", do mano curador de nossas empreitadas literárias, o Sammis Reachers". 

Não posso me esquecer do também amigo e irmão Felipe Sabino, do "Monergismo", que apesar dos seus muitos afazeres e obrigações, sempre me dispensou uma gentil atenção e, também, disponibilizou uma cópia do livro para download em seu site.

Quero, ainda, fazer um agradecimento especial ao amigo e irmão Tiago Knox, do Internautas Cristãos, que gentilmente liberou uma cópia do meu livro para download, e sempre foi uma das pessoas que mais me incentivou a escrever. 

Mais uma vez, agradeço, do fundo do coração, a amizade, atenção e auxílio que estes quatro irmãos sempre me dispensaram, nos últimos sete anos, ao menos (já vamos para quase uma década de amizade). 

Sou-lhes imensamente grato!

Então, sem mais delongas, vamos às palavras generosas do Fábio. 


*****

"'Todos os homens são iguais
Até a primeira linha escrita'...
Quando comecei a ler o livro do meu querido Jorge Fernandes Isah, já coloquei ao meu lado uma folha em branco para anotar os títulos dos poemas com os quais eu mais me identificaria. 

Sim, "identificar" é a melhor palavra a ser empregada quando leio poesia (e mesmo prosa), pois gosto daquilo com o que me identifico e aquilo que gosto se identifica comigo. Como se o texto lido fosse um espelho, revela aquilo que tanto preciso saber (ou relembrar) sobre mim mesmo, mas que recuso enfrentar ou trazer à memória e o poeta/prosador é esse autor que lança diante de mim o que insisto em não querer ver. 

Ao ler, vejo o autor e seu universo, mas é no verso que me atravessa que me encontro fisgado definitivamente e é isso o que eu mais gosto. Assim, preciso confessar que foi no poema "Navalha" que a carne da minha percepção se abriu de vez. 

E, quando dei por mim, minha folha já se encontrava cheia de títulos de vários poemas: "Motejo", "Palavra", "Paradoxo", "Transpiração", entre tantos outros. Contudo, destaco o poema "Anular" de metáforas e cenas exatas. Gostei demais!

Querido Jorge, bom mesmo é gostar de se identificar. Bom é saber que não se caminha esta estrada sozinho, meu caro irmão de letras. 

Parabéns pelo livro!"

A Palavra não Escrita


Para baixar, gratuitamente, no "Poesia Evangélica"

Para baixar, gratuitamente, no "Monergismo"

Para baixar, gratuitamente, no "Internautas Cristãos"


 *****


A Palavra Não Escrita - Poesia - Jorge F. Isah

  1. 1. 1
  2. 2. 2 Edição, Revisão e Arte: Kálamos Editora www.kalamoseditora.com Todos os direitos reservados Julho/2016
  3. 3. 3 ÍNDICE GERAL  PREFÁCIO 005  APRESENTAÇÃO 007  ESTRO 011  OBSTANTE 013  A LAO 015  GRAMAR 016  NECROLÓGIO 017  IMPOSSÍVEL 019  DEVO-TE 021  FINAL 023  PAPEIS 024  FINGIR 026  UMA ÚNICA VEZ 027  BALDADO 029  EPÍLOGO 031  ABAIXO 034  AMOR 035  NAVALHA 037  AS LÍNGUAS 038  VIGIA 040  PRIMÁRIO 042  DELINEAR 044  MOTEJO 046  FERMENTO 048  ANULAR 049  PALAVRA 051  CONSTRUÇÃO 052  ILUSÃO 054  AFASTAR 055  DOR 056  FRESCOR 057  ÁLBUM 058  ROÍDO 060  ADEUS 061  TRIUNFO 063  OUTUBRO 064  TÖRLESS 065  TARDIO 067
  4. 4. 4  A CRUZ 069  CUITA 071  VONTADE 073  MONOCÓRDIA 075  PARADOXO 077  CIVIL 079  TRANSPÍRAÇÃO 081  BÁRBARO 083  DUREZ 086  ANULAR 088  MORTOS E VIVOS 090  GALOPE 091  DIVISOR 093  ADOPTAR 095  NÃO PENSAR 098  A PALAVRA 099  TEMPO 101  AVISO 104  FATAL 108  EVOLUÇÃO 111  MODELO 113  CABER 114  METÁFORA 116  VERBO 121  INFINITO 124  A MORTE DA MORTE 126  CATENA 128  ESCONDERIJO 131  ASPAS 133  PRAGMA 137  ENGANO 138  CURVA 139  LIVRO 141  KAMIKAZE 144  NON COMPOS MENTIS 147  CALMARIA 149  PADRINHO 151  ENCURRALADO 154  FINIS 157  ALERTA 159

  5. 5. 5 PREFÁCIO
  6. 6. 6 A poesia de Jorge F. Isah nasce carregada de enlevo hermético. Como os mestres hermetistas italianos do século XX (Montale, Quasimodo, Ungaretti), a cada poema de Jorge somos confrontados pelo toque da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”, e mais, “decifra-me e devora-me”: que maior convite pode fazer um poeta, pode propor um poema? E Jorge avança, como alfarrabista de palavras que é, como artista ora cônscio, ora febril, a estabelecer seus mosaicos na tabula rasa do papel; sua arte nunca é superficial, nunca é simplória: ela não solicita, mas é uma onda densa que arrasta, desperta e conclama ao mergulho em suas torrentes verbais. Exige a atenção, engaja e transveste seus leitores no tensionado herói Teseu, cuja atenção freme ululante enquanto avança pelo labirinto - cujas bifurcações vão se adensando a cada quadra. O prêmio para aquele que perseverar está ao fim do labirinto, embora feito da soma de suas partes: o gozo silencioso da celebração poética, o graal misterioso e assaz buscado, o pequeno êxtase quase epifânico (pois a poesia tem e terá sempre - quem a furtará? - algo de religião, de religação com o divino) que só a verdadeira arte pode inocular nas veias da alma. Este A Palavra Não Escrita é um manjar pleno para o verdadeiro apreciador de poesia, posto em salvas de prata onde o leitor sorverá a multiplicidade de percepções do autor, cujos versos transitam das elucubrações de sua alma às mazelas da sociedade, do fulgor metapoético, da poesia que se dobra sobre si mesma, à louvação dAquele que é a fonte matricial de toda poesia, justiça e beleza. Uma jornada com poder de transformar percepções, cujo arco tensionado se estende do álacre ao pungente: esta é a proposta de Jorge Isah neste seu elaborado labirinto. Sammis Reachers

  7. 7. 7 APRESENTAÇÃO
  8. 8. 8 Não sei ao certo quando comecei a me interessar por poesias, e, mesmo, quando comecei a escrevê-las. Recordo-me de tentá-las na infância, lá pelos meus oito ou nove anos, quando já dominava a leitura e a escrita com alguma desenvoltura, própria dos infantes, claro. Tinha muito a ver com a escola, cujas professoras solicitavam, como trabalho de casa, a confecção de sonetos ou quadras, em alusão a alguma data comemorativa, um fato histórico a se tecer loas, uma notícia de apelo para a época, como a exploração do espaço ou a conquista de um campeonato de futebol. E se tornava, muito mais, em uma disputa interna entre os alunos, para ver quem ganharia (tudo se baseava e resumia a uma competição; quem tirasse a melhor nota ou tivesse o seu trabalho elogiado pela direção e, em alguns casos, chegar a ser lido diante de todo o colégio, era o vencedor, ainda que pudesse dividir o prêmio com um ou outro). Eu sempre gostei de disputas; e tentava, a todo custo, copiar o estilo de um ou outro autor famoso (dos quais não me lembro, mas não devia sair da lista de Carlos Drummond de Andrade, Cassiano Ricardo, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles e Olavo Bilac... Quem sabe, Castro Alves, também), não sem plagiar um verso aqui outro acolá, substituindo uma palavra por alguma correlata ou análoga. Obtive sucesso duas ou três vezes, o que já era muito para mim ou qualquer guri. Na adolescência, lá pelos doze, treze anos, decidi me tornar em um poeta de verdade (doce ilusão), e comecei a produzir versos com maior frequência (não tanto quanto os jogos de futebol e disputas de carrinhos de rolimã no asfalto me apeteciam e atraiam), o que acabou sendo interrompido com a minha adentrada ao mundo ébrio, das orgias, lá pelos dezessete, dezoito, e que me tomaria quase todo o tempo, nos próximos vinte anos. Como o vício do álcool requer uma dedicação mais do que religiosa, uma forma de autoidolatria na qual o “deus” se encarregará de arruinar o devoto, poucas vezes retomei à tarefa de produzir algum verso. Além do mais, quando escrevia, fazia-o na forma de prosa, em contos e novelas e protoromances esparsos e descuidados. Somente depois da minha conversão ao Cristianismo e à fé bíblica, pude entender o quanto de tempo eu jogara fora, desperdiçando-o em mesas de bares, calçadas e varandas cheirando a carvão e gordura, fermentados e destilados. Também compreendi a verdadeira essência da literatura, dos valores morais, da

  9. 9. 9 ética e da alta cultura, algo que por longos anos desprezei, considerando-a nada mais nada menos do que uma afetação estética de alguns intelectuais, numa apologia a produções perdidas no tempo e na história, e que nada tinham a ver com a modernidade ou originalidade. Eu, sem saber, estava contaminado pelo espírito revolucionário, e em uma defesa cega e irracional de um tipo de cultura que se sustentava pelo fisiologismo da mendacidade; na incapacidade de seguirem os mestres clássicos, os verdadeiros produtores de cultura (e até mesmo tentar copiar-lhes a genialidade), quase toda uma geração se nivelou na linha mais baixa da patifaria, produzindo “obras” que envergonhariam até os mais bárbaros e primitivos. E o que se assiste, hoje, é a expressão máxima da pretensão e arrogância do homem moderno, o proponente de uma cultura rebaixada aos preservativos, urinóis e vasos sanitários, quando não ainda piores, movidos pela ideologia. Gastei alguns anos para entender isso e a buscar uma forma menos “anatômica” de escrita. E o resultado está contido nestas páginas, iniciadas em 2009, ano em que escrevi os meus primeiros versos, depois de décadas de silêncio, e finalizada em 2015. Talvez você, leitor, depois de adentrar neste livro, dirá que eu deveria ter-me mantido calado, arriscando-me apenas às impressões etílicas. Espero, sinceramente, que esteja errado, e você possa não somente apreciar, mas se identificar com a minha escrita. É um desejo, e uma esperança. Assim como Cristo é a minha esperança, hoje e sempre. Não poderia deixar de asseverar que a iniciativa de fazer literatura está diretamente ligada ao anseio de glorificar e louvar o Filho de Deus, sem o qual nada do que eu faça teria sentido. Por mais que eu seja vaidoso, e não nego sê- lo, em si mesma ela, a vaidade, não seria capaz de tirar algo de mim além de mais de si. Sendo que, na verdade, quero tirar mais de mim mesmo para colocar mais de Cristo em meu lugar. Sabendo que isso não é uma prerrogativa minha, mas dele; e por ele, somente, é possível diminuir cada vez mais a fim de que ele cresça. Por hora, você terá de se contentar comigo, mas espero que este todo não seja sequer igual ao que fui um dia; e que possa ter sido ontem. Que estes versos soem aos seus ouvidos como palavras não escritas. Jorge F. Isah

  10. 10. 10 “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Tinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz” - Agostinho de Hipona, Confissões, livro X, 27, “Tarde te amei!...” -
  11. 11. 11 ESTRO Aqui estou diante da tela vazia, Esperando o sentido das teclas Encher o silêncio de ruídos, Sem que haja a digital paralisia, E fique o som dos fogos estrênuos, A arrebentar o tímpano dos vira-latas, Sufocando os tiros da guerra jactosa, Sob o concerto de sirenes histéricas, Talhando exitoso a asfixia. Não se ouve o grito no alarido, Nem a lágrima na investida, O cansaço destila o efeito tristonho, Como figos ao sol perdendo umidade. Vai-se a ideia sem sentido,
  12. 12. 12 Na mira do backspace inquieto, Sem a desinência nas flexões, Conjuga-se os painéis decorativos. Os sonhos dissipados, Espaços em branco contínuos, O movimento de muitas coisas na cachola, Leva o espírito a bem perto da malignia.
  13. 13. 13 OBSTANTE Ignorando a bondade o coração menospreza a riqueza fantasiosa a imortalidade contenciosa das pessoas não poupadas. Ninguém o condenou apesar da consciência arrastá-lo a julgar-se ensimesmado a trocar o escrito pelo implícito e avançar lentamente no passado. Se ter por regalo a promessa, de ser contado solitário, recebe agora o consolo, de consigo reconciliar-se,
  14. 14. 14 quão morto sem batismo.
  15. 15. 15 A LAO Tomas tua desgraça e vesti-te em ti mesma Pois não hás de tecer o que te cubras, Não podes alinhar-te em refúgios, Nem te adornares menos árida, Ou trazeres aromas que te reputes. O ardor que em ti hás, És água-morna a vomitar-te.
  16. 16. 16 GRAMAR As palavras correm desavisadas, Como se fossem águas incontidas, A rodear uma cidade indigente, Por cujos lábios é hostilizada. Andam errantes de manhã à noite, Olhos atentos e ouvidos moucos, Uma víbora que cerra os dentes E carrega os encantos digestivos. Não se coram na violência, Nem se purgam nas sombras, Tem a alma em sustenido, Presa ao lamento dos homens
  17. 17. 17 NECROLÓGIO A escuridão se esvazia, na medida absoluta do desalento, desídia impossível de fuga, de mover-se na paralisia, em filigranas luminosos, que avistaria, caso existisse, na impermeabilidade do repouso. Não entre sem bater, nem bata ruidosamente, para não perturbar o sono, e ouvindo apenas o silêncio, não se abra à pompa. Afasta-se, se tem pernas ágeis, daquele encontro mefistofélico, reservado como tesouro, no tempo corroído inutilmente se por palavras traiçoeiras,
  18. 18. 18 se por lâminas afiadas displicentes, faz o mal apressar-se em persegui-lo, na desenfreada verborragia açulosa. Sim, sim! Não, não! o que passar disto é estorvo, não se supera o problema pelo engano, nem a dúvida pelo desacordo. Se aquele que se desviou não creu no que deveria crer, considerou negar os anos que não viveu, a correr da direita para a esquerda em passadas preguiçosas, num longo percurso tartamudeante, jogado aos braços de uma estranha, sem sentir-se traído por mímicas evanescentes, quão repetições de uma obra inacabada. A antítese de si mesmo, sendo aquilo que nunca será, mas sendo tudo o que foi... um punhado de terra lhe sobreveio.
  19. 19. 19 IMPOSSÍVEL Como apaga-se o passado da memória? E dissipa-se as lembranças futuras? E vive-se no fundo como se fosse raso? A revolver a vida não esquecida, em imagens de tempos furtivos? Revoga-se o que não pode ser suprimido vive-se uma contínua inconsciência, em lacunas cheias de gritos histéricos, de que o homem finito é impossível e somente é-se no infinito. De que certas coisas não afugentam nem se permitem fugir, de que o acaso não retém a verdade, nem o atalho obsta o seu caminho, de que a coragem não se lança às ruas sem antes descer aos bueiros, de que alcatifas não vestem a chafurda
  20. 20. 20 sem se arrastarem pelos cacos fendidos. É inútil tentar manter-se vivo quando se está morto. O que se quebra não se reconstrói, a menos que seja novo, e o impossível torne-o. Por ele, nele, viva.
  21. 21. 21 DEVO-TE Se agora o sorriso é jubiloso e não mais os dentes renhidos, Se o vento me refresca a alma e não ouço mais os trovões, devo-o a ti. Se as mãos se unem em harmonia e trabalham juntas na mesma vontade exercitando a justiça a não jabear nervosas mas entrelaçadas na verdade, devo-o a ti. Se o coração expurgou e o sangue não está a ferver em vícios, E aquele momento se eternizou e não mais o esquecimento resistirá, Se hoje não estou mais morto como era outrora, Se sou, sou em ti, como nunca fui antes mas devo-te porque em ti vivo
  22. 22. 22 movo e existo. Sem ti, o que seria de mim? Não me lembres daqueles dias nos quais desfalecia como moribundo agora sou teu e nada me fará voltar ao vômito de onde fui tirado lavado e vestido em roupas brancas a olhar-te, frente a frente, assim como sempre olhou para mim. Se sou, é porque tu sempre fostes e jamais poderias não ser o “Eu Sou”. E devo-o a ti.
  23. 23. 23 FINAL Todos aqueles anos levados Como carga em lombo de asno, O ar a esvair do balão rasgado Cacho podre desatado do galho. Histórias levadas à vida Fotografias desbotadas Álbuns alargados no tempo Cicatrizes a coser a alma. Sob vinho tinto derramado O último ímpeto de tudo Perpassa glossário adunco Qual o sibilar de bala perdida. Não há condições a cumprir, Nem resta esconderijos, A nau abismada na tormenta Multiplica o corpo em nacos, À última molécula reduzida.
  24. 24. 24 PAPEIS Folhas imóveis perdidas entre cativas pétalas a abandonar o eco desertor a contender noites recortadas antes do último aclive descido. Verdade oferecida em pagamento uma e outra arrastada ao lado a honra impelida faz a norma eliminar o vento. Formas oblíquas queimam-se à raiz a revelar figuras geométricas um ou poucos caracteres à vista como o vagar das causas singulares. Amores ornamentais cultivados em canteiros delgados a imitar o laço do passarinheiro desviados do antiquado alfeizar das mãos consentidas do verdugo. Retém-se o que se perdeu
  25. 25. 25 na vocação fora do tempo.
  26. 26. 26 FINGIR O que fazer a respeito, se nas salas deveriam proibir os escandalosos e violentos, mas preferiram iluminá-la com grandes feixes brilhantes? Acaso não são os herdeiros do mundo, cujo sentido verdadeiro é postular a caduquice do seu tempo, sem constituir algo além da arruaça? Magos da segurança anulada, da novidade sem esperança, a se amontoarem escondidos no galho cerrado, encolhidos, em si mesmos... A não sobrar nada, nem o que se recolher.
  27. 27. 27 UMA ÚNICA VEZ O destino não selado, a dúvida iminente, tentativas cassadas, de reescrever a história transpondo-se o ocorrido. No prognóstico impreciso o régio não é delírio. A condenação, um ato de pureza no perdão não se toca por motivos reivindicados, a salvar-se na coincidência ou a troco de nada. Cedo ou tarde triunfa o único a atravessar eterno antes da criação e do tempo na ordem ignorada e edificada na palavra. Determinou a origem e o fim
  28. 28. 28 estrada aberta em mata virgem tão longa que imaginar cansa; homens perdidos, unidos na fé, quão ânimo dos santos. Do passado não se lembra nem há suspeita relatada ao se abrir o livro da vida nenhuma ausência for sentida. A necessidade de reparar não precipitou o desfecho, ainda que sempre escrito.
  29. 29. 29 BALDADO Barcos vêm e vão do cais Ao som das ondas na amurada A abrigar-se na divisão dos elementos Destituídos no mundo dos sábios Que se recusam a qualquer mistura Mas se ainda coubessem em seu interior Todas as perguntas sem respostas A turva visão repetida dos problemas Não mais do que palavras sem início e fim. Entoar para si os cantos esquecidos Faz das noções abstratas o lugar da aventura Por notas dissonantes, o espírito em choque De um modo ou de outro, recebe surpreso, A verdade como um risco imprevisível. Olhos abertos a lembrar a crise Na direção do futuro sem matriz Da paixão sem amor Da morte como casa abandonada A difundir feridas na antena do rádio.
  30. 30. 30 Impossível ao nada disputar o lugar Onde o salário da morte desse vida Sem atravessar o desfiladeiro E imaginar-se salvo nas coisas iludidas Curado da doença terminal A molestar a frase sem sentido. Por que o sentimento abandona-se? Se do bovarismo se chega ao estímulo? A derrota é o desafio de tardes repetidas Nos encantos renunciados da vida A consagrar-se no remorso sem perdão. O porto-seguro é o lugar Onde a âncora não tocou.
  31. 31. 31 EPÍLOGO O suor a instilar pelo corpo, A última gota a jorrar da fonte seca; Em breve haverá apenas a terra árida, E o sopro do vento gelado A corroer o ânimo combalido. Os olhos que me veem com os quais vejo, As peles exalam o que me pertence, Os suspiros, o ar derradeiro nos pulmões, O eco a zunir sentido às palavras. Cabelos brancos a esvoaçar, Folhas esturricadas a farfalhar, Rugas crispadas, fendas no rochedo, Não há mal que perdure, À esperança de que o bem nos alcance. Ainda a correria desenfreada, O tempo a escoar, A barragem quebrada, Num alívio efêmero;
  32. 32. 32 Há agonia, a carne lavrada, Nenhuma semente a germinar. Ao querer rejeitá-la, O nó paralisante, Faz o sangue jazer inerte, Nas artérias obstruídas, No colapso dos sentidos, No redemoinho frenético, Forja-se a imagem do que não sou Sequer fui, pode ser que seja... No fundo, enquanto estraçalhado, Não sinto a dor que me perpassa, Nem o pavor a consumir-me, Há o hálito morno a expulsar-me de mim, Como um exército em retirada, Sem ter aonde abrigar-se. Quisera poder chorar, Rasgar a carne com as unhas, Cuspir no rosto, Amaldiçoar o dia em que nasci, Apesar de não remediar o pecado, e absolver-me. Sou condenado à morte infinita, À eterna agonia de jamais vê-lo... Após a sentença iminente,
  33. 33. 33 A culpa instituída, Quis instar-lhe o perdão, Era tarde... Impossível... Os grãos debulhados Jamais retornam ao sabugo.
  34. 34. 34 ABAIXO Nada se completa No tempo suficiente Nem se perde Irreversível Até se estancar Os ponteiros E a dúvida se render. A eternidade içada ao tic-tac Ao zunir infinito Da morte a se prolongar Nos gemidos.
  35. 35. 35 AMOR Não é o nome apagado na agenda, Nem a vela a consumir-se no funeral, Ou a água a esvair-se da pipa fendida; É muito mais do que cair do cavalo, Manter os pés secos na enxurrada, Cozinhar o galo em banho-maria, Sonhar tênue em meio à emboscada. É como erguer uma parede, Estender a mão ao amigo, Chorar a dor de quem perdeu, Andar sem esforço no atoleiro. Pode durar uma hora ou dias; Pode arrastar-nos pela vida, Pode perpassar indelével com o tempo, Pode ser a carga a nos arquear. Cura Mitiga, Suporta Fia.
  36. 36. 36 Conhece, E faz-se conhecer. Tem coração, Tem vida, É verdadeiro, É Único. Seu Nome acima de todos os nomes. Não há outro, Diante do qual o amor se curve.
  37. 37. 37 NAVALHA E continuou a pedir um sinal se em cima ou embaixo pouco importa é verdade manteiga e mel antes que saiba que desde aquele dia nunca favoreceu os vivos nem se separou para a luz e persistiu em assoprar as moscas em fender a rocha em cortar arbustos quão lâmina sem gume.
  38. 38. 38 AS LÍNGUAS Eu abraço-me a mim mesmo Tu abraça-te a ti mesmo e nós não nos abraçamos viramos os rostos como se nossas almas estivessem atoladas na lama traiçoeira ou arrastadas a águas fundas por correntes impiedosas. Não cansamos de chorar enquanto as gargantas secam e os corpos desfalecem por que a causa que defendemos é a que mais rejeitamos e os amigos que nos cercam são os inimigos que nos alcançam. Estranhos, desconhecidos jejuamos o amor e saciamo-nos na dor a resgatar depressa a angústia escondida
  39. 39. 39 como se não houvesse compaixão e achá-la seria o mesmo que se embriagar de vinagre ou fartar-se na miséria a compartilhar indignados. Sem o meu abraço no seu abraço a semente não herdará a terra e desejar o mal será o mesmo que tirar as entranhas e dá-las aos cães e escorrer por uma longa distância a lamber o pó cujos rastros as línguas deixaram sobre o chão.
  40. 40. 40 VIGIA O que os olhos não viram os ouvidos não ouviram quando a língua se calou e na enxurrada de palavras os lábios acossaram o restolho seco e a defesa intentou mentiras zombou da verdade ocultou o feito como se cinzas espalhadas na grama escondessem o cheiro ardido. A culpa levada ao vento no redemoinho de amarguras em roupas roídas por traças a ordenar a rendição do caos e dos meses a raptar segundos pois o tempo não tem repouso nem a água vive ao longo do rio esgotado nem o combate alcança o limite removido. Por que as pedras se gastam em lágrimas?
  41. 41. 41 E o espírito a despir-se no látex? O afeto é broto, pó a nascer em ramos a lavoura a exalar o cheiro morto. O homem nasceu condenado, a vagar pelo pão diário a recompensa pela dor que não cessa a fim de agarrar a sombra em noite sem luar. Lançou-se aos pensamentos sem nenhum esconderijo. Apenas o túmulo a vigiá-lo.
  42. 42. 42 PRIMÁRIO Contínua procura da ordem, à cata de respostas adequadas, por longos caminhos sem distâncias, onde a humanidade atingiu a vida com o golpe de quem, no lugar da morte, transmitiu dúvidas. Onde começa o homem? Onde termina o espírito? Ou o espírito é a gravidez com dores a parir o homem? E o dá a conhecer-se? Ninguém se esforça em elogios, o silêncio é vagar sem lugar, onde amigos lançam ataques suicidas, em previsões mais graves do que curtas, no breve intervalo do coro alternado, aberto em ondas mecânicas longitudinais, de que não se pode escapar sem queimar-se as partes condenatórias.
  43. 43. 43 A mão misteriosa é a que, antes de tudo, inflama as palavras para o que não era não seja mais, e o diagnóstico precoce não cure as dores. Permanentemente. Impossível. Para o bem real enquanto diminui o imaginário de existir, como uma pequena parte do que não se foi inteiramente capaz de viver. Em todos os lados, em todas as direções, as coisas cheias esvaziam-se, as maiores, sumiram-se, de onde vem, não vem mais, a parte infinita já não é nem a parte do que se pode ser. O pardal não voa como outrora, receoso de encontrar o lugar em que se cai.
  44. 44. 44 DELINEAR Os ventos correm desordenados, Como cabelos soltos na rafada, A brasa crepitando na enxurrada, O ócio a desandar a paciência. Os olhos fuzilam o fronteiriço, A ponderar o aspecto descuidado, Uma blasfêmia notada por vigilante, Como dedo a verificar na galinha Se está a pôr o ovo. Estropear sem freios a língua, Leme vergado em ondas bravias, A comandar o mal resiliente, No esconderijo desvelado. Ceder ao peso do fraco,
  45. 45. 45 Dar nó em laços partidos, Silenciar o barulho da mente, Potro selvagem domado, Inflama o sopro abatido.
  46. 46. 46 MOTEJO Não os conheci, Nem os encontrei, Já é muito Fazê-los abandonar, Agora venha, sem cargas. Não há palhas, Nem cascas, Colha o grão seco dos galhos ociosos, E ocupe-se com palavras vãs. Nada diminuiu, Nem o restolho se espalhou, Apanhei-o, como joia acabada, Enquanto a aflição veio ao avançar da noite. Julguei as mãos vazias, A culpa abandonada, Ontem, foi apenas outro dia...
  47. 47. 47 Os braços estendidos, O nome marcado, Nenhum som aos ouvidos, Nem sangue nos lábios, No torpor ficou claro, O que as moscas haviam dito.
  48. 48. 48 FERMENTO Donde veio o sorriso amarelecido, Também surgiram os dedos maculados, A língua impura e seus tabuísmos, O roto a enfeitar o vestuário. A culpa jaz morta no precipício, O féretro desfila entre flores, Ao som da última gargalhada, Reluz as cinzas monocórdias. O fagotino tangia as notas Da modinha celibatária, A plástica imagem delinear Da massa levedada.
  49. 49. 49 ANULAR Quem inventou o medo, não desmaiou outra vez, nem se incomodou que a loucura o interrompesse, enquanto tomava o café da manhã fumegante, e partia os ovos levemente duros. Por sorte ninguém o esperou até agora, então se correr com as ataduras soltas, cuidado! Pode-se cair, e quebrar o pescoço. É como soluço em copo d'água, esconderijo em praça pública, o rigor das respostas às perguntas malfadadas, corre-se o risco dos pensamentos fragmentados, na medida dos erros exatos, na obstinação mais próxima da
  50. 50. 50 refrescante agnosia. Para que o corpo seja entregue, e aqui enterrado com todas as honras. E não se negue o contado, porque sempre haverá mais alguém, em última instância, a recusar o tempo. Depois de tudo, sabe-se pouco, porém a ignorância não será eterna. Por isso, espera-se tal qual os indicados, que as explicações anuladas não resistam à última palavra predita.
  51. 51. 51 PALAVRA Todos os homens são iguais, Até a primeira linha escrita. Os verbos, em busca de harmonia, Conjugam-se a completos avulsos. A história enreda-se apócrifa; Os outros, nada entrecham Além de sinuosas tramoias. O visível e iniludível, De tão óbvio, Não se compreende, Desde o princípio...
  52. 52. 52 CONSTRUÇÃO Quão grande tristeza se me abate, Como saraivada de tiros no peito, Qual apêndices a se arrancarem, Tal a morte se avizinha solerte. Sendo eu a chama-la desavisado, Esperando uma Vênus solene, Atirar-se nos braços desnudos, Cujas mãos prende-a correntes. O último suspiro inaugural, Sem forças para inalar o ar puro, Não se sustentam e evanescem, Palmilhando a alma tristural. Quando estou fraco, sou forte,
  53. 53. 53 O apóstolo dizia oportuno; É possível carregar a força Em um corpo notório doente? Esperança do cinto desapertar, De afrouxar a corda hirta, A algema desencadear-se, E aliviar-se a carne livre. Ainda há a luta encetada, Uma odisseia de sangue; E que o meu nele morra, Desarreigando-me perpétuo.
  54. 54. 54 ILUSÃO Se o martelo no bronze Não produz nenhum som; Se a pedra no vidro Não o reduz a estilhaços; Se a água na areia Corre impermeável; Se o vento nas folhas Não as deixam agitadas; Se o som não reverbera no aço E a luz esconde os objetos, A dor que sinto não é Pela ferida aberta, Mas pela santidade Que poderia fechá-la.
  55. 55. 55 AFASTAR Naquele dia, em pé, ela chorava, O pranto triste do pesar sem lágrimas, A dor profunda sem o grito arrebatado, O ânimo tomado pelo afogo totalitário. As mãos lançadas ao rosto, Os pés titubeantes sem rigor estético, A respiração perdida no abalo profundo, Prisioneira em um veemente afeto. O barulho fugidio da sirene, Em que a vida absorvia-se barulhenta, Naufragando num martírio impetuoso. Dominada pelo risco iminente, Entregou-se à culpa descortês, Do temor daquele jogo inacabado.
  56. 56. 56 DOR Os címbalos ecoam tristes e solitários, Como vestes suntuosas em corpos mirrados. Os sons ubíquos e troantes, Como o grito amargo da rejeição. A voz tiple equaciona-se À proporção do abandono. E a toada de encher os ouvidos, Agoniza a alma, silenciosa.
  57. 57. 57 FRESCOR O gomo de menta enche-me a boca De um hálito suave e agradável, Como a brisa marinha pela manhã Acaricia o rosto em toques brejeiros, Enquanto a moça volteia-se lépida Esvoaçando o vestido feito penacho. Ainda há um calor a irradiar-se, Tal qual o sorriso tépido Denuncia a vergonha, De que o passo em falso É ferida exposta ao sal.
  58. 58. 58 ÁLBUM Uma brisa que se pode tocar, O redemoinho a abraçar-se, Soltura a reter-se vigorosa, Magnética a trespassar-me. Não me odeie sem me amar, Não ame suas reminiscências, A reentrância aprisionada a ferros É o aroma fugidio das esperanças. Leveza no caminhar cativante, Distração apreendida no olhar, Cabelos doiro esvoaçando ao sol, O melancólico perene alvitre. Aquelas manhãs nas calçadas Tornam-me lúdico e cismático,
  59. 59. 59 Da maneira mais maleável De suas formas me comporem.
  60. 60. 60 ROÍDO O silêncio não traz o pânico Que o barulho exorbitado impinge Dos tiros, dos gritos e massacres Das latarias se contorcendo Ou dos pneus rasgando-se Do estrondo invadindo as paredes Ou os tímpanos lamentando-se Do ruído investindo-se como adaga. O silêncio pode trazer a calma Desde que não seja duradouro E não ouça o som dos vermes A comerem a minha carne Senão suplicarei o bulício.
  61. 61. 61 ADEUS Qual dor é mais doída, Do que ver a amada sofrer, E em longa agonia, Esperar um fôlego novo de vida? Dor maior é vê-la morrer, Sabendo do fim do corpo, Do abraço não dado, Do beijo não sentido, Do sorriso jamais visto, Dos sons e murmúrios inaudíveis, Dos movimentos imperceptíveis, Do reclinar manso da fronte, Da suavidade na voz maternal, Daquele sentimento perdido, Somente possível de encontra-lo Na eternidade.
  62. 62. 62 Não há dor mais insuportável A explodir o peito, Do que ver a mamãe partir.
  63. 63. 63 TRIUNFO Ah, por que dizes que o tempo tudo cura? Se há moléstia latente no oculto da alma? Qual verme a corroer a carne morta? Porque há remédio ineficaz à dor; Assim como o tempo não cura a si, E, a cada segundo, deixa-se morrer? Se não sobreviveu ao luto, Revestiu-se da vitória na derrota, A imortalidade alcançou-a sem demora. Cristo quebrou-lhe o aguilhão, Vencendo-a com a sua morte, Sujeitou a ambas, na ressurreição, Sem que pudessem reagir.
  64. 64. 64 OUTUBRO Quão tépidas as ondas de calor, Espalham-se pelo corpo em calafrios, Correntes destilam-se pelo odre, À mente imbui-se a cálida apatia. Quarenta graus, aponta o mercúrio, As pás das hélices não se dominam, O biruta suspende-se amolecido, Como a haste seca derribada. Na calmaria dos sentidos, Perdido o fôlego derradeiro, Resta o caráter volátil, dos vapores repulsivos.
  65. 65. 65 TÖRLESS Pensar é algo estranho, O acaso sem deixar rastros, Emerge para a morte, E sucumbe à vida, Cresce como uma flor magnífica, Murcha lentamente em horror. Perde a forma, o aroma, a cor, Flutua na superfície desordenada. É a âncora lançada no vazio, Círculo de luz na escuridão, Velhas fotos esquecidas, Notas açoitadas pelo borrão. O vidro estilhaçado em mil, O silêncio maculado na solidão, O rastro ardente do porvir, Incinerado em sonho indeciso.
  66. 66. 66 Pensar é a última dúvida, Tocada pela sutil agonia, Pela secreta suspeição, De se tornar homem refinado, Entregue a ocupação descabida.
  67. 67. 67 TARDIO Se não fosse Agostinho a dizer Que o homem pode e não pode, Eu não saberia poder mais Além do silêncio sepulcral, Da sílaba imóvel no palato, Sem conexão alguma à imagem Intermitente do pecado. Agora restam-me lembranças, Da vida vivida e indesfrutável; No arrependimento da época, Sobrepujou-o o ego indulgente, A vergonha descabida, A omissão insidiosa. Ah! quantas risadas ocultas, E abraços recolhidos,
  68. 68. 68 Beijos contidos em cofres; Enquanto a dor e a solidão Vincavam-lhe o coração e a face, Resignava-me ao distanciamento Daquele lamento quebradiço. E nem a dor impediu-a de lutar, E de mostrar-se mais forte adiante Do suplício de não ouvir as palavras Acalentadas como antídoto, à virtude Impossível do vigor evanescente... De todo poder ao que ama.
  69. 69. 69 A CRUZ Ah! O silêncio impossível, Emaranhado na cabeça, A um zumbido ecoante, Entre latidos persistentes. Ah! As energias esvaindo-se Em um sôfrego estômago, Frêmitos latejantes no peito, Como se fosse sufocar-me. Ah! As memórias esvoaçantes, Choram e riem de saudades, Num tempo em que não eram antes, E agora perfilam-se sugestivas. Ah! O futuro desejoso e esperado, Da paz inimaginável e duradoura,
  70. 70. 70 Como o suspiro diante da beleza, Ou o ar estancado pela morte. Há uma guerra deflagrada, Onde armas obsoletas e inutilizantes, Apenas distraem-me do confronto, Garantindo-me a derrota alcançada. Mas há uma cruz, e nela o libertador, Há sangue pelos dedos e cravos, Do seu lado e dos pés, E, então, posso ver a vitória.
  71. 71. 71 CUITA Debaixo da placa do noventa e dois zero cinco Sob o farfalhar das folhagens imperiais, Ao fundo, a Praça ornamenta a Estação, Carros disputam-se no asfalto fatigante, Entre as colunas de edifícios taciturnos. Calçadas repletas de mesas e cadeiras, Garrafas e copos ruidosos nas superfícies, No constrangimento das músicas ordinárias, O vozerio ébrio assaltado de sequidão, É a tristeza a ocultar-se na névoa de nicotina. Vejo até onde os olhos alcançam, Rostos implorando um sentido, Não por uma vida malbaratada, Mas pela morte demasiada tardia.
  72. 72. 72 Sinto agulhadas no peito, Como se fosse eu o moribundo, Nos estertores daqueles corpos, Compungia-me vê-los se definhando. Uma lágrima contumaz ameaçou esquivar-se, Retive-a, com o lado do indicador a tempo, Ao cheiro de coroas de lírios brancos e rosas lilases, A tampa de pinho escancarou-se impiedosa, E a lentidão dos meus passos não me impedia De afastar-me, e alcançar a porta estreita.
  73. 73. 73 VONTADE A vontade livre, livre da vontade, no vazio e no nada, deixada ao acaso, sem base, como se ter vontade? A liberdade de não ser, nem poder se ter, a vontade não subsiste sem influência, sem influência não há vontade, sem vontade não há responsabilidade, a sorte nega as duas, e as duas negam a sorte. Ainda assim, há a vida e a morte, na vontade e na sorte. Deus controla as duas,
  74. 74. 74 e tudo o que representam, seja o início e o fim, por sua vontade.
  75. 75. 75 MONOCÓRDIA Vivendo em um mundo histriónico, Onde o único alívio parece ser o barulho, E as caixas de som exorbitadas O silêncio impossível da alma Tardio na dor, na aflição, De uma cura remediada pelas feridas abertas, No tum, tum, tum, repetitivo e insano, Na mente ocupada pelo fervilhar da carne, Na brasa apoquentada do ruído, Sob o álcool a injetar as pupilas, Cauterizado os ouvidos, Como veneno injetado Ao percorrer o corpo sem equilíbrio Entorpece-o, E não é difícil vê-los como animais atracados, Um bando faminto de vida, Mas recheando-se da morte
  76. 76. 76 Tal qual a flor seduz na beleza Lançando o tóxico, Sem que a presa se saiba apanhada. E, por mais que me esconda, Em quilos de algodão nos ouvidos, Portas e janelas fechadas, frestas vedadas, Tenho por companhia os indejados, Funkeiros, lambadeiros, forrozeiros, brejeiros, A impor a sua presença forçosa, Como se eu estivesse preso a algemas estrepitosas, Quase desejando uma surdez intermitente, Nos finais-de-semana, feriados, Noites de quarta-feira e sexta. Ah, como anseio o silêncio, De não ouvir nem mesmo a respiração, Envolto na lúdica esperança de, Nos céus, Deus lançar no inferno Todas as caixas de som E a maldita monocórdia dos homens.
  77. 77. 77 PARADOXO O espaço sem espaço É como o homem cheio de si Falta-lhe oxigênio nas alturas E um coração a bombeá-lo. É como uma casa ocupada Onde as camas são insuficientes E a despensa, arsenal de vazias latas. Muitos teimam na única certeza, Há apenas dúvidas e inverdades E mesmo décadas de experiência Recrudesceram-lhes as suspeitas. Que mundo louco se construiu, Onde a crença é estúpida! Mas até mesmo o maior incrédulo
  78. 78. 78 Fia-se convicto no seu ceticismo. É o paradoxo herdado do Éden! Uns enfrentam-no de frente, Outros fogem atemorizados, Receando saber o ignorado. E, no fim-das-contas, para quê? Se a sua fé lhe basta?
  79. 79. 79 CIVIL Ouço vozes em turbilhão, Debatendo-se numa sonora guerra, Onde nem mesmo o grito mais alto Abafa o gemido imperceptível. Os pés cambaleantes Duelam na confusão dos passos Na barafunda das pedras portuguesas Entre papeis amassados e escarros. A parede branca, outrora bela, É estuprada pelas cores berrantes, Por rabiscos desconexos e ultrajantes, Dos sórdidos a espalharem sua feiura No apogeu da barbárie moderna. O sangue se mistura a excrementos
  80. 80. 80 A epiderme recebe as marcas da agulha Como o bezerro, o tição ardente Os lábios falam do que o coração está cheio Vagueando pelas partes glúteas. Ainda bem que não olham para o céu, Senão o manchariam com a violência, O mesmo não se dá com os gramados verdes Pisoteados pelos músculos indolentes, A intransigência como um princípio sólido, Ignorando o certo, o errado, o improvável Pois assim, é mais fácil viver... e murchar-se.
  81. 81. 81 TRANSPIRAÇÃO O martelo e a talhadeira rebimbam na parede vizinha; A serra recrudescente trincha o aço perto da janela; O choro do menino se mistura à histeria materna; O cão late repicando ao ganido longínquo; Na rua, o calor do asfalto amolece a borracha do pneu; E o atrito do freio impregna o ar de fumaça. A porta bate, O foguete espoca, O gato mia, O sol abrasa, A campainha toca. Enquanto a concentração se perde nos sons. As artérias latejam assomadiças, Umas frases convergem-se em sequências ilegíveis, Outras se embaralham nas consciências afligidas.
  82. 82. 82 Panelas se batem na pia por espaço, O frango crispa na gordura da frigideira, Não adianta fechar as venezianas, Se não se pode expulsar odores e barulhos. Alguém disse que a inspiração não é tudo, Mais vale o esforço e a abnegação, Chego a temer nesta atividade insalubre, E não sei se suportarei a exposição diária, Ao pastiche de sobreviver nos cotidianos, E criar frases límpidas e relevantes, Sem a quietude noturna dos conventos.
  83. 83. 83 BÁRBARO Soube de imediato quem era, Ouvindo as notas desordenadas, Em um compasso catadino, Igual alienígena em terra, Na estridulidade musical, Tal qual tudo se perdera. Sobraram pés repicando o chão, Das risadas guturais e tresloucadas, Dos olhares degenerados, No bulício das mentes encarniçadas, Pela avidez tremulante das carnes. A beleza redeu-se à deformação, A saúde, à enfermidade, Entre placas de “amor e paz”, A guerra interior semeia-se lá fora,
  84. 84. 84 Em uma estrondosa derrocada, De final prenunciado e indigente. O exílio, no prosaísmo público, Como em um vórtice, Toca-lhe o fundo da alma; E o faz venerar a sublimidade Dos alienados, Compartilhar a dor dos acastelados, Sem remédio para as feridas, A consciência em coma induzido. A flor murcha, não exala perfume, Mas o odor de vapores delgados, E vislumbrá-la, de qualquer lado, Dá arrepios; como se deitar Sobre o mármore gélido, Ou o sussurrar ao ouvido do diabo. Excitação e taquicardia São insiders do espírito mortiço, O anúncio, na monocórdia urinária,
  85. 85. 85 De uma eternidade em agonia.
  86. 86. 86 DUREZ Por quantas vezes Ouvirei aquela palavra, E me sentirei morto, Como um corpo conservado no gelo, A alma intacta não se aluiu, Insensível aos ouvidos moucos, Ao troar da lima no metal? Quantas vezes ainda A espada me ferirá, O sangue a jorrar anêmico, Jaz-se em poça, se esvanece, E nem pode uma mancha forjar? A quantas vezes Irei tropegar, Qual velho a mover-se no pântano, A resvalar a ponta do dedo Em algo que julgava bálsamo, Mas sequer pode-se entrever? Dores a fustigar; Entre golpes acolhidos,
  87. 87. 87 A pasmar a consciência suína, Não é ainda o nocaute... Nem o espírito sepultado.
  88. 88. 88 ANULAR Quem inventou o medo, Não descorou outra vez, Nem se incomodou que a loucura O interrompesse, Enquanto tomava o café da manhã Fumegante, E partia os ovos levemente duros. Por sorte Ninguém o esperou até agora, Então se correr com as ataduras Soltas, cuidado! Pode-se cair, e quebrar o pescoço. É como soluço em copo d'água, Esconderijo em praça pública, O rigor das respostas às perguntas Malfadadas, Correr o risco dos pensamentos Fragmentados, Na medida dos erros exatos, Na obstinação mais próxima da
  89. 89. 89 Refrescante grosseria. Para que o corpo seja entregue, E aqui enterrado, com todas as Honras. E não se negue o contado, Porque sempre haverá mais Alguém, em última instância, A recusar o tempo. Depois de tudo, Sabe-se pouco, Porém a ignorância não será eterna. Por isso, espera-se tal qual os Indicados, Que as explicações anuladas Não resistam à última palavra Predita.
  90. 90. 90 MORTOS E VIVOS O corpo no esquife faz lembrar que as pessoas mortas parecem vazias, como se sentissem falta de algo, seja da alma onde sobra apenas o corpo, ou do corpo de alma repelida, sem vida e abandonada. Morrer não é possível quando já se está morto; e aos mortos não é dado o direito à vida, se Deus não os regenerar. Se o velho não se fizer novo, e não for enterrado eternamente, o morto não pode ressurgir, pois Deus é dos vivos, enquanto os mortos, não ganham vida.
  91. 91. 91 GALOPE Não é esse o castigo esperado A voz que se faz ouvir no topo do carvalho Os prados a chorar a seca dos dias a consumir os palácios, a retirar os trilhos de ferro e carregá-los por quatro noites, e depositá-los nas cinzas da cidade perdida. O fogo a correr pelos vales Por três vezes quebraram ferrolhos, tomaram das mãos as alianças e deram-nas aos inimigos como a preservar a honra em conserva. O calor dilatou-os por três A dor multiplicou-se por quatro Na tempestade, os alaridos da batalha A cal derramada nas feridas, os ossos queimados. No meio deles e fora deles Entre eles e sem eles Todos e nenhum rejeitaram e não guardaram a sua lei,
  92. 92. 92 enganados pelas suas mentiras perambularam desnorteados como almas em quarentena. Porque se vende a justiça por qualquer dinheiro Porque se vende o pobre por um hambúrguer e se morre de fome suplicando um pouco de pó sobre a cabeça. As roupas empenhadas e manchadas pelo vinho tinto, são raízes puxadas por baixo da terra, a tornar moribundos os frutos e as folhas vivas. A fuga é o cavalo montado a galope no precipício.
  93. 93. 93 DIVISOR O segundo não é o sexto Primeiro entremeio a palavra O sumo veio a tempo escorrido nas casas forradas dispersas no deserto quão roupas de várias medidas O pouco recolheu o muito A fome se fartou no saco furado Ninguém se aqueceu na madeira molhada Dissipou-se o orvalho, o sopro O vigésimo sombreou o quarto No ano dos meses fastiados O sétimo não é o oitavo A noite é o dia Diante dos olhos o que restou era o nada que se via e não se tocava Daqui a pouco o último será o primeiro
  94. 94. 94 o maior igual ao menor No lugar cercado de ânsias a pergunta não tem resposta Ponto morto Se alguém pejar o nono não haverá pedra sobre pedra nem vinte contra dez em vez de cinquenta, doze Céu e terra ordenados Pela segunda vez a figueira não deu frutos à romeira Desde o dia em que se fundiu ao riso dos outros
  95. 95. 95 ADOPTAR Amei, e não amei tenho no peito a tristeza e a dor contínua de que poderia eu mesmo ser maldito e por amor receberia as suas culpas ainda que tenha motivos para não amá-los mesmo que a raiva os transforme em inimigos e me torne hostil enquanto os ouvidos moucos desprezarem as promessas benditas, os olhos forem buracos ocos, e a língua a difamar a justiça daquele que chama não passarão de defuntos em que as velas acesas as súplicas repetidas, velarão suas mentes mortas, e de nada adiantará o choro convulsivo das carpideiras nem o riso ébrio dos inconvenientes se Deus não se compadecer e restituir-lhes a vida que não tinham. Se caíram, quedei-me sem possibilidade de escolha nos seus pecados participei ativamente cedi quando não mais resistiram à tentação sofrida pequei quando não havia a chance de não-pecar ajudei-os a preservar aquilo que sabiam tão bem na queda direta que os levaria ao chão na falsa neutralidade da ordem distorcida.
  96. 96. 96 Estão postos entre o bem e o mal não conheciam o bem possível, mas sucumbiram à possibilidade do mal desconhecido. Pela não-liberdade escolhida, do ponto de vista da influência necessária e inevitável não depende de quem quer ou de quem corre nem do tempo contado de alguma maneira mas daquele que tem a promessa, a aliança e a glória. Para que desse a conhecer as suas riquezas nos que são seus para que desse a conhecer o seu poder para que suportasse com muita paciência os que não são seus a destinar uns e outros para os lugares que dantes preparou. Mas ele diz: Manifestei-me aos que não perguntavam por mim Fui achado pelos que não me buscavam para que entre os remanescentes sejam trazidas as alegres novas de coisas boas. O inimigo amei como ao amigo selado pela afeição perene daquele que estendeu as mãos para fechar as portas do abismo, e trazer-me
  97. 97. 97 dos mortos a Cristo, mesmo nos confins do mundo, nunca serei confundido.
  98. 98. 98 NÃO PENSAR Descansar e não pensar, repousar na esperança, sentir a vida até onde for trazido, no princípio, no meio e no fim, como se já estivesse longe perdido no fundo do coração sem o direito ao perdão divino a dispor, lado a lado, as coisas num último raciocínio forjado: o de não pensar. Enquanto menos vivo.
  99. 99. 99 A PALAVRA Onde está o refúgio? E o socorro no momento da angústia imediata? Quando o trovão não emudece, nem a terra se muda, ou o mar faça-se abrir na escuridão perturbadora? O silêncio não é o fim da guerra nem mesmo a trégua, em que as vozes se calaram por esquecerem o grito. Antes, os pensamentos são sepulturas de palavras mortas, onde a mente recebeu a pintura grotesca e rebuscada, do juízo desfeito em prisão. A palavra não se media pelo
  100. 100. 100 soprar do vento, pelas dores do parto, a mão cheia de sangue, os bens entregues ao louco, mas por quem a conhecesse. Inclinem-se os ouvidos, fecha-se a porta dos lábios, e os olhos contemplem, para que laços não amarrem, nem a alma se parta como a lenha na lâmina do machado, e não seja apanhada na rede. A rocha é a palavra que seus dedos esculpiram na rocha. O esconderijo sem fuga.
  101. 101. 101 TEMPO O tempo não se fatiga, jamais dorme ou descansa, nem precisa de auxílio, não usa bengala ou se deixa carregar na maca, ou se lança inerte à cama. É como o curso d'água no leito do rio, a irromper constante, mesmo caudaloso a nos apressar, mesmo minguado a reter-nos. Onde os passos apressados não combinam, onde o estancar teimoso não pode se partir. O tempo é uma ponte que nos leva da fonte
  102. 102. 102 à foz, as vezes em arroubos, noutras, complacente, a escavar barrancos, erguer trincheiras, a cortar o sopé do lugar escarpado, derribar os limites reservados, separar o barro, misturar os detritos coligidos. O tempo carrega montes e vales, vida e morte, o perdido e o achado, o pronto e o inacabado. Há espaço para o que se foi, para o que está presente, e ao que ainda não veio. É o fluído estanque na botija, de onde a torneira jorra, incapaz de saciar a aridez do sedento. Não se pode tê-lo nem querer mais. Fartar-se: o sinal de que o tempo já chegou.
  103. 103. 103 Avidez, pode ser o sinal de que ele está a fugir. E não resta mais tempo.
  104. 104. 104 AVISO Aviso: não siga! Estanque. Volte. Mas não olhe para trás. Pise o mesmo caminho, do qual dantes quis fugir, aonde corriam as pernas, e o tremor levantava poeira. Aviso: não siga! Nem em vinte dias, nem ontem ou amanhã,
  105. 105. 105 ou nos próximos cem anos. Não volte àquele lugar, porque os amigos perderam-se no instar da bocada a devorar o cachorro-quente, e a Coca-Cola não conteve o esgar. Aviso: não siga! É Deus livrando-o. Mesmo que ele não seja assassino, mesmo que o celular não toque novamente, nem lhe devolvam o sono desviado, e a violência serene. Mesmo que não entenda o seu riso, nem o nervosismo a contrair-lhe a face,
  106. 106. 106 e sejam restituídos os minutos preciosos em tempo. Aviso: não siga! Não é uma advertência, mas uma ordem. Não é provável, mas certeiro. Não é impossível, mas para que não aconteça o iminente. Não é o delírio. É profecia. Quem tem ouvidos, ouça. Aviso: não siga! Porque Deus não escreve
  107. 107. 107 certo por linhas tortas. Ele escreve, certo! Não é um aviso. Aconteceu. Para que a surpresa Não lhe pegue imprevisto, e o aviso não seja o repentino epitáfio entre as lágrimas chorosas dos que o amam. Aviso: siga-O.
  108. 108. 108 FATAL Gravemente pecou; Chorou as lágrimas solitárias na noite inimiga, A festa era porta fechada onde habitava a aflição, E os suspiros desolados do errante repousavam nos caminhos tortuosos e devastados, Onde o socorro não alcança, onde o fim não é lembrado. As mãos folheavam o álbum, os retratos de tempos antigos, O papel exaurido e as cores desbotadas pareciam zombar da ruína em que se tornou. Gravemente pecou; O pão, a nudez, o ouro no pescoço, a beldade, eram o troco da alma declinada, Os ossos esmagados, a carne enfermada não podia mais comprar, Nem mesmo adubar a grama, nem afastar a cerca ao redor. A armadilha presa aos pés, avalanche sobre a cabeça, Velhos mortos desatavam águas dos olhos, jovens convocavam a derrota na última batalha, Vestir-se de trapos enquanto as luzes expiravam sorrateiras, E a treva revolvia as entranhas como o fogo consome a úmida
  109. 109. 109 lenha. Gravemente pecou; A semente rejeitou a terra, Mães arrastaram filhos pelas ruas, A boca cuspiu fora os dentes, No assobio, cabeças meneadas chocaram-se com muros, E não se podia escapar da última palavra: a loucura não sara. Multiplicou-se a ira de Deus, Deu solenes gritos ao ver o lugar destruir-se, Gemeu diante do esforço vão de quebrar os grilhões, Devorou o dia pensando na noite, entrou por onde jamais sairia, Guiou-se como alvo às flechas, fez um prato fundo de areia e lodo, Escondeu os ouvidos da sinfonia como se esmigalhasse o único troféu. Gravemente pecou; A vida pulverizada como metal limado, Esperar razão quando sobrevêm amarguras, Põe a língua no pó, persiga as nuvens no céu, Não se deixe fugir da morte, e ponha-a a salvo depressa, Pois o castigo espreita, prestes a abater a caça implacavelmente. Polir o lixo, a culpa não pode ser aplacada com uma desculpa. Gravemente pecou; Desviou-se, fugiu, andou lentamente erradio, perseguiu ciladas, A pele presa aos ossos como cão vadio, sem dono, Foi-lhe posto o último fôlego, o negrume a vaguear como cego
  110. 110. 110 tocando o vazio, Debaixo da sombra viu covas enfileiradas, nunca mais se morará ali, Serviu-se o alimento, e água suficiente para acabar com a sede, Porém, contaminado pelos seus pecados, cumpridos os seus dias, Consumiu-se no fim como a descobrir uma recompensa... que não chegou. Gravemente, pecou.
  111. 111. 111 EVOLUÇÃO Faltam tábuas suficientes, faltam pregos necessários, há tábuas sem pregos, pregos sem tábuas, martelos sem cabeças, cabeças sem cabos. Nunca suficientes. Há pregos tortos, e tábuas tortas, e martelos leves demais. Tudo imprestável. Outros são tão pesados que se é impossível levantar. As serras não têm dentes, puas não realizam furos, e as brocas são planas, enquanto as chaves não torcem as fendas,
  112. 112. 112 nem as lixas alisam as crostas. Mas todos esperam por mesas e cadeiras, e elas o marceneiro, que ainda não foi concebido.
  113. 113. 113 MODELO O oleiro e o barro, o barro espera o oleiro, a água a lavar o barro, enquanto o barro espera o oleiro, enquanto o vaso espera o barro, e o vendedor a esperar o vaso, enquanto a flor agoniza nas mãos do oleiro. Que não amassou o barro, não fez o vaso, apenas arrancou a flor, porque todos disseram que era advogado, enquanto esperavam o oleiro.
  114. 114. 114 CABER Frio, Pés em modorra, O silêncio, A contemplar as pás girar. Latido, Revolve as tripas, O sentido, A latejar as pontas dos dedos. Risco, Lança-se ao desperdício, O sonido, A empilhar calafrios. Rude, Fustiga a pedra solta, O sólido, A fragmentar-se no moedor. Freio, Pedágio em terra estéril, O sino, A roer o osso. Livre, Rende-se à dor infinita,
  115. 115. 115 O sono, A fatigar em penas. Inferno, Não é apenas o torpor dos delírios.
  116. 116. 116 METÁFORA Vi a aflição estampada em seus rostos, os dedos claudicantes a tentar pegar objetos aleatórios, como se pensamentos não imaginados pudessem erguer colunas, levantar paredes, decorar palácios, encher os palcos. Vi a aflição estampada no meu rosto, a impossibilidade de se mover qual caça aprisionada, como o condenado à morte pode apenas contrair os músculos e retorcer a pele durante a execução, enquanto o nariz permanece gelado, e as mãos suando frio.
  117. 117. 117 Vi o sol escurecer, e as trevas se ocultarem, enquanto tateava o vazio distante da luz. Vi suas carnes envelhecerem, pele e ossos quebradiços, a exalar um cheiro doente de que embaixo dos escombros não havia sobreviventes, e os mortos cercavam-se nos lugares tenebrosos. Vi os caminhos obstruídos por avalanches, mercenários aguardando de tocaia. Nos esconderijos possíveis não se pode entrar, errante nas ruas desertas, os olhos não seguravam as mãos vazias, nem os velhos guardavam as crianças nos colos, pois as atenções se voltavam para as prateleiras do supermercado, vazias. Vi os desdentados rirem-se ao passar, somente eu ouvi, porque o povo cantava uma marcha fúnebre, embriagado no próprio desespero.
  118. 118. 118 Uma canção alegre os levaria à loucura; a brisa suave os queimaria como gravetos na fornalha. Vi o choro, e recordou-me a infância, quando chorar era possível, recuperar o fôlego era possível, a alegria era possível, até mesmo engasgar era possível; havia esperança, e a força não se dissipara; nem todos os dentes haviam sido arrancados da boca. Vi suas almas combalidas, enfermas, embaladas pelo silêncio solitário, aguardando as bocas se encherem de poeira; por uma palavra, o orgulho derribado. Entendeu-se o bem por mal, de bom grado, o mal foi-lhes por bem, debaixo dos seus pés estavam as palmas que festejaram a traição, enquanto cabeças meneavam,
  119. 119. 119 e o cativeiro era o descanso de si mesmo. Não se sustenta o coração tomado à força. Nem os frutos roubados do ventre. Ou o perdão entregue por ira, se o suspiro não serve por pagamento da dor. A minha cabeça posta ao laço, vi-os verem-se, a julgar a minha causa como se obra das suas mãos, da mesma forma que se negou o pão ao faminto e leite ao filho convalescente. Por sua causa não ouvi meus pensamentos. A música os silenciara antes mesmo de se levantarem ou assentarem. Vi. Vi, novamente.
  120. 120. 120 Revi. A figura capturada entre as pálpebras. O sentido naturalmente desfigurado. Uma metáfora no lombo do caranguejo. Onde a vergonha corrompeu o silêncio, igual a razão morreu a pauladas.
  121. 121. 121 VERBO O Verbo era, É, Será, Nada pode contê-lo, Nem os anos passados Ou vindouros, Nem a vida Ou a morte, Nem a luz Ou trevas, Nem o mundo Ou o vazio, Nem os filhos
  122. 122. 122 Ou bastardos, Nem a graça Ou a verdade, Nem a fé Ou descrença, Nem a glória Ou a plenitude, Nem o sangue Ou carne, Nem a história Ou a mentira, Nem o calor Ou frio, Nem o bem Ou o mal, Nem os anjos Ou demônios, Céu e inferno... Pois antes de tudo,
  123. 123. 123 Foi sempre. No princípio Ou no fim. Nem a eternidade É-lhe claustro.
  124. 124. 124 INFINITO Calma, o mar se tornou ainda mais tempestuoso, Profundo, o sono não pode ser interrompido por ferroadas, Fuja, enquanto se agarra às amarras do mastro, Lançam-se as cargas, o vento não quer o mar calado, O silêncio é o medo de lembrar Que a sorte ruiu como o casco em pedaços. Calma, o mar não vai se aquietar Até que as aves deem voltas na terra, E se cansem de ruflar as asas, E recordem que o céu não lhes é permitido, De que a terra seca é temerária. Calma, o mar está embravecido, Por minha causa, a fúria não cessou, Os remos se perderam na tormenta, Salva-vidas definharam ao peso das almas viciosas. Calma, o mar não se aquietará, Levantai rogos e preces, Nossas cabeças estão postas sob sangue inocente, Vede, ele ofereceu-se em sacrifício,
  125. 125. 125 A causa de não ser eu consumido em desgraça. Calma, deixou o mar a sua ira, Ele declarou que fez tudo por mim, Até mesmo o mal sobreveio por sua causa, E temi... Por que, se enfurecer de novo, o que farei? Calma, não há como desertar, ninguém há de acolher, A passar por cima de mim, a gratidão exibida São lágrimas encerradas por ferrolhos no coração. Calma, o inferno cercou-me, com a angústia dos perdidos, Diante dos olhos, os lamentos são falsos sacrifícios, Como a recompensa do ingrato, o pagamento do estelionatário, O cordame enrolado ao pescoço, o ofício do morto. Calma, gritei do ventre a minha oração, Tornei a ver a sua misericórdia, Voltou-me a vida às entranhas, a resposta aos ouvidos, Fui convocado à sua presença, retido no tempo indefinido, Onde se desenrola irreversível o perdão definitivo, Como o compasso do andar imutável, sem decorrer o fim. A obra verdadeira testifica: Do Senhor vem a salvação.
  126. 126. 126 A MORTE DA MORTE Onde está o sinal prévio? Se em cada esquina deu-se à dor? E não compor o estilo para não ser exigido, por que, ao silêncio persuasivo, de que adiantam palavras imperiosas? O vigor do corpo alivia a alma perdida em buscar paliativos quando se esqueceu de tudo, no momento em que o tempo passado não se chega mas anda-se segundo o curso do mundo, a desfrutar os laços cingidos, noite após noite, a chance menor fugidia. A atacar-me a ideia da morte, uma mente sem Deus é como uma ferida crônica,
  127. 127. 127 quem dera não ter a consciência afligida nem ninguém a cobrá-la, e assim rir-se no enleio do choro convulsivo, às vistas do espelho casto ocultar o mistério que ninguém sabe, nenhum olho viu, ouvido não ouviu, antes é o desfrute louco, o fraco a confundir o forte, as coisas que não são a destruir as que são. Ele levou cativo o cativeiro, Aspergiu o cheiro de morte para morte aos que se perdem, e a fragrância de vida para vida aos que se salvam, Da morte fez vida pela vida que nos deu na sua morte.
  128. 128. 128 CATENA Construir notas sinfônicas... no silêncio, Pintar a vida à óleo... na tragédia, Erigir torres ao céu... nas profundezas, Tocar as nuvens... no calabouço, Esculpir a realidade... no delírio, Eternizar a história num flash, na escuridão dos fatos, Imortalizar a morte, trazer à vida os defuntos, Fazer das letras sonhos, contar os grãos de areia na ampulheta, Traçar retas que se encontram, e linhas que se fundem. O homem... pela arte. Desenhar plantas nas paredes, Colar estrelas e luas no teto, Tatuar a pele, tingir os cabelos, Mudar as formas do corpo, Injetar anfetaminas na mente, Plantar a melhor planta, Colher o melhor fruto, Criar o sapato ideal para pés tortos, Levar à perfeição o existente, Quando a perfeição caiu no Éden.
  129. 129. 129 E o homem morreu... por um desejo. A bomba que destrói, O remédio que não cura, O desprezo que não envergonha, O cuidado que se despreza, A mão que molesta, O porrete que se estende, A mordida que dilacera, A frieza que acomete. É o homem morto... no desejo. Desejo de ser deus, De alcançar as alturas, De voar com as aves, Cantar com os pássaros, Nadar contra a correnteza, Sem esperar a morte nas cabeceiras. O homem sem lugar... no desejo. A angústia cria, A dor cria, A falta cria, O medo cria, A mentira cria, E o mal se refestela... no homem morto, No desejo do cadáver que não pode querer, nem criar.
  130. 130. 130 Porque onde Deus não está, não há substituto, Nem como substituí-lo. O vazio não se preenche, a despeito do esforço. Resta apenas o vácuo. E o homem insurge-se a nada, Preso à própria rebeldia.
  131. 131. 131 ESCONDERIJO Folhas ao vento, cinzas ocultas na terra enlodada, A memória zomba as palavras escondidas ao inimigo, Depois que se cala, os dentes exibem restos de carne não comida, O rosto esconde-se entre culpas e pecados do passado, Sinais herdados, coisas amargas a consumir a causa justa. Como a traça roí a roupa e não teme a morte, Vagueia-se pelo deserto, na desordem dos caminhos reticentes, Em sombras confiscadas pelas trevas, Onde não há quem solte, nem há quem prenda, apenas a vida dá lugar à morte. Quando cai o sono, adormece a cama, A alma buscaria as veredas bucólicas, a repousar sob os álamos, Mas desvia-se por entre os ossos aflitos, suporta o castigo contemplativo, Em que a noite visita os moídos, inclina-se sobre os fortes, reparte o dia, Porque a dor é o mensageiro dos perdidos, o pão o resgate da carne, O pó a resposta ao acordo desfeito, o fôlego último a pelejar na guerra perdida; Há o leão a saciar-se com a fome, e os trovões a sussurrar o dilatar dos céus.
  132. 132. 132 O vento traz os dias, raios a colorir os rostos secretos, Gotas de orvalho endurecem-se na superfície congelada, Ferro a esculpir a rocha, cascas de árvores arrancadas à unha, O espírito afugentou a momentânea alegria, e não mudará as coisas indesejadas. Ao redor, o que não me pertence faz parte de mim, Espalha-se a raiva onde estava confiada, pronta a perseguir o pecado, Passo a passo, lado a lado, a sentença é o pretexto à rebeldia, Sem forças não há protesto que dure, Fica-se a replicar às vezes, mão posta à boca, Porque a vida é o esconderijo da morte.
  133. 133. 133 ASPAS Há uma história conhecida, A conversa começada no olhar primeiro, O pano de fundo que não é avistado, O nome que não é lido. Há um que conhecia todos, Não precisava do testemunho alheio, Traduzia cada pensamento, Não se prendia aos relatos e exemplos variados Ou a segredos havidos, Nem circunstâncias encontradas nos Corações, pois As almas eram transparentes,
  134. 134. 134 E diante do impossível retorno A implicação irrelevante carregava sentido. Pontos em desacordo arrastam à invalidez, Mesmo que para isso o pior não aconteça. Oferece-se para conhecer o verdadeiro estado, Onde naturalmente não se discerne se o segundo é Uma série de eventos rotineiros, Ou passou inutilizado. Se os motivos fogem acobertados pelo esmero, No tempo meticulosamente tolhido. Ao legista dá-se abandonar o cadáver dissecado, Em que o descanso é proibido, O débito mutuamente acrescido ao conveniente. O mais importante viola o menos irrelevante, Justifica-se a si mesmo, Quando se pode ter algo melhor do que
  135. 135. 135 Inimigos mortos, e o perigo de levantarem Da morte. Não lhe diz respeito ao esforço, Se abertamente implorou as cartas lançadas fora. Ter respeito é a condição da alma de Sustentar o homem injustificado, A surpresa de sequestrar a última palavra Enquanto não cede passagem. De onde vem, não vai, Favoreceu uma em detrimento da outra, Nenhuma vez foi mencionado. Quis preencher o vazio carregado de Múltiplas afeições. Porque não se estendeu o medo Sem requerer a verdade, Apenas o descontrole não combinado
  136. 136. 136 Rejeitou a sugestão introduzida, De que a exceção não deu lugar; E perder os detalhes promoveu o impossível, O simples a imitar o plural Sem tempo a uma declaração precisa, O olhar indisponível, Da tortura cumprida. Foi removido, sem aspas Nem reflexão. O detalhe dissociado do grande tratado Aponta à duração extinta, De que o foco se perdeu em ocupações. Construir o começo, Lutar pelo fim.
  137. 137. 137 PRAGMA Não há muito o que dizer quanto a isso, nem muito com o que se preocupar, em certo sentido a necessidade repousa sobre o alicerce incoerente, em que o eclético pode estar em um ou outro lado da ponta, pode estar reunido ou separado, e ainda que não pareça funcionar, e reflita a mentira mais obscura recuperada, é como o alicerce erguido inadequadamente no pântano. Diante do arcabouço das escrituras, nenhuma mentira pode ser desenterrada, nem a verdade pode-se sepultada, a menos que o eclético seja posto de ponta-cabeça, a juntar os retalhos como numa colcha prestes a se rasgar. Por Ele, a resposta foi dada.
  138. 138. 138 ENGANO Aquela dor faz que não se esquece, Perpassa entre um analgésico e outro, Faz constatar que já não há mais cura, Apenas o sofregar crônico do andar preguiçoso; Como o leito seco do rio, Árvore a balançar os galhos sem folhas, A boca a escancarar o silêncio, Borboleta sem asas, o molestar insinuoso. Não se faz de rogado, Queima, corrói a carne, Aos poucos, dilacera a alma, Nem mesmo no alívio há conforto; Fica-se a esperá-lo seguro do retorno, E a expectativa é muito mais que um pesadelo. Não é suposto, nem se suporta, No desvelo com que acalenta Há somente a promessa de cuidado, O laço da última cilada, a instar uma coisa noutra, Sem abdicar o desatino.
  139. 139. 139 CURVA Não consigo ver o fim da curva, se há um fim na esquina, Talvez o ambulante instale-se, talvez o mendigo estenda o jornal na calçada, Enquanto as notícias são incapazes de descobrir a alma anônima, Por entre buzinas, apitos, guinchados e chiados, entre o sol escaldante no asfalto, Os ocupantes parecem flutuar no elevador, entre respirações contidas e olhares estáticos. Se o último areal foi pisado por sapatos macios, os pés afundaram na enxurrada, Arrombadas as portas, qual tranca poderia salvá-las? Nem o alarido estridente da sirene, nem o estampido distante do revólver; As algemas, no meliante, fizeram-no rir, como a receber um presente indesejado, Que não se pode desprezar, impossível não usá-lo; Ao balão que cinge os céus, segue-o o limite da vista. Enfim, o descaso não revela a vala que nos confisca. Sigo o cheiro ao fim da curva, há um fim na esquina, Rolando noite após noite na cama, imagens atropelam-se
  140. 140. 140 convulsivas, Nem a modorra e a lassidão dedicada, dá-se ao estupor indistinto, Afoito como nenhum sentido pode ser outro pode ser, Como nenhum ocorrido pode acontecer, O despertar sem medo pode-se no desvario, No turbilhão de efeito ocultar-se sem escopo, um ato menos mais que outro, Girar em sentido às várias pessoas, ponto que se espalha de onde partiu. Foi enviado, reproduzido, como o curso que se estanca, Sem disciplina a marcha não dura, o tempo igual à flatulência, Soltas como versos sem rima, naipes desordenados, Limites retidos na memória, frases indistintas que a contém. Condenar o inesperado, dissolver o exílio, ausentar-se dos lugares; Uma vez no destino, vagar como alguém sem povoado, O absoluto está perdido, é anterior a cada sensação, Se houve confusão e há dúvida, absolve-se a saliva no estômago, Resta ao exército do faraó o mar tragá-lo, Assim como a lágrima não há de carpir o vermelho. O argumento sem argumento: replicar o vento, Dispor-se antes de arranjá-lo.
  141. 141. 141 LIVRO Corro, Se não quiser, paro. Falo, Se não quiser, resta-me o silêncio. Choro, Se não quiser, há um riso. Como, Sobra-me ainda a antiga fome. Bebo, Do cálice que ele esvaziou por completo. Porque todos buscam o que é seu, Não existe um sentimento sincero, Tudo é um acordo, Onde cuidar de mim é passar o dia solitário, Em que imaginar-me brevemente consigo É combater a vida, próximo à morte. Corro, Se não quiser, não paro. Falo, Se não quiser, não silencio. Choro, Se não quiser, não rio.
  142. 142. 142 Como, Se não quiser, me sacio. Bebo, Do cálice posto a esvaziar, O gole que me lança ao abandono, E me torna o doente de muitas saudades, Menos da aflição que me possuía. Se quiser, não se ausentará de mim, Nem a tristeza se sobrepor a mais tristeza, Oferecerá cuidado para que a confiança não se desvaneça, E o consolo enviará depressa, porque estou abandonado, Seguindo a confusão dos que ficam atrás, Avançando para as últimas fileiras como se fossem primeiras. Se não corro, É porque quis parar-me. Se não falo, É porque quis silenciar-me. Aquele cálice que ainda não bebi, Se quiser, tragarei. Não me faça revolver o próprio vômito, Ou imitar a mim mesmo, por não suportar o desastre, E a minha vocação seria a perda de todas as coisas. Sacia-me, Não queira deixar-me faminto. Esvazia-me, Não me deixe avançar no pecado, confiar na carne, Pois quanto mais eu sou, menos me acho nele, E tenho alcançado os inimigos da cruz. Se quiser, Deixarei de seguir os mortos,
  143. 143. 143 De consternar a verdade, furtar o ânimo, Vagar por lugares sem socorro. Queira levar-me de volta, Retenha-me no seu coração, Porque não tenho escolha, Se não me conceder o gozo, malograrei perdido. Agora como antes, serei posto sem esperança, E a alegria: a boa vontade dos outros, A pureza por contenção. Desejo partir, se os joelhos não dobrarem É melhor que a terra me tenha por um nome sem nome, Como a lâmpada que nunca acendeu, A presença que não foi sentida, O estado primário do que não foi provido. Não me faça esquecido, porquanto se quiser, O meu nome inscrito no livro sempre está.
  144. 144. 144 KAMIKAZE Não há altura de onde não se possa cair, E vejo-me quase estatelado ao chão, A observar as nuvens movendo-se lentas. Rastros isolados dos supersônicos aviões, Quebrando o silêncio com ostensivas turbinas, Rasgando o azul, como se fosse um cirurgião. Daqui de baixo, ouço o convite recusado, Na aflição do suor correndo pelo rosto, O sofá e as tevês disputam a primazia nos lares, O vozerio e a fanfarra nas mesas dos bares, A lassidão sentada em frente aos portões, Enquanto corpos seminus exibem-se No asfalto quente. Espera-se a vida passar de canga e bermuda, Arrastando os chinelos na calçada,
  145. 145. 145 Com uma canção idiota nos lábios, Mas ela está reclusa, Esperando um coração sincero encontrá-la, Sem dar importância às macaquices, Às rotineiras presepadas. Aventar a autonomia do nariz É prova cabal de penúria, Ao colocá-lo no estrume, Cheirá-lo, E descobrir alegre: é alimento! Daqui de baixo, o fôlego suprimido Na ânsia de leva-los no escuro, Mesmo tateando, É apontar para a luz no fim do Túnel. Imperceptível, inacessível a muitos, Eterna e gloriosa a outros, A verdade a iluminar tudo, O sonho indesejado e escondido
  146. 146. 146 No medo; De conhecer o insólito, Estabelecer-se no perdido, No boato como a qualidade Do banal. A lonjura é o ponto Onde não se encontram. Daqui de baixo, vejo o meridiano, E as gaivotas e martins adejando, Sobre os indolentes e pequenos krills, Faz a morte parecer inocente, Aos tiflos.
  147. 147. 147 NON COMPOS MENTIS Se ela não me ouvir hoje, Como no silêncio de outrora, Seus lábios contrair-se-ão, E dirá blasfêmias pelos olhos. Seus músculos retesariam, A face mascarada no rubor, Carne estremecida na angústia, Pelo direito à negação sagrada. Aproximar-me-ia claudicante, E tocaria os cabelos adejados, Na docilidade dos eflúvios rancorosos, Como o gado pressentindo o sangue Em que se vai afogar. Os olhos verdes fulminantes,
  148. 148. 148 Dentes brancos a ringirem-se, Anunciam seios distantes, Evocando almas finadas, E diletantes carpideiras. Ao meu sorriso porfiado, Um muxoxo seco e preterido, De nariz empinado, A sombra, rápida, em recolhida, Na dispersão de notas dilaceradas, Do amor impossível e encarcerado, Em domicilio... Não sem antes perder o juízo.
  149. 149. 149 CALMARIA Os olhos pesavam naquela tarde abrasiva, Horas depois da noite fugidia e perdida, Revirar os lençóis desbravando o rebuliço, Em busca do silêncio omitido, Na alma inquieta e combalida. Os sons das ruas, dos céus, das casas, O portão que bate, a janela que trepida, Pés arrastados nas calçadas, Uma lata jogada a distância é ferida No asfalto ríspido, E a voz estridente tripudia sobre o bem-estar Sonoro. Se os ruídos não bastassem, O suor gruda-se à cama, E o vento oeste abolido,
  150. 150. 150 Na calmaria dos graus infinitos. Se agora o sono cai, E o espirito jaz abatido, Não resta outra coisa A não ser um cochilo... Se a Makita não estridisse, E os motores das lavadoras Não agitassem, Em uma sinfonia sem tino, Dormiria no abismo Da inconsciência permeável.
  151. 151. 151 PADRINHO Ali estava ele, curvado sobre o papel, A anotar mais uma porca e menos um anel, Limpando a poeira das latinhas de Pepsi, Esticando o cinzel, para deixa-las alinhadas. Ali estava ele, de pé diante da estante, Arredando uma peça milímetro à esquerda, Puxando outra, à direita um instante, Afastando-se e olhando de longe Se a simetria dos copos e garrafas não Havia se perdido. Ali estava ele, agitando-se de um lado a outro, Organizando pastas e fichas, como se fossem As preciosidades de um museu ou galeria. Não se importava com o tempo gasto,
  152. 152. 152 Desde que soubesse o lugar de tudo, Se certo ou certíssimo, A não gastar mais de dois minutos para acha-lo. Ali estava ele, me chamando de Jorginho, Perguntando pelo Fifo, o Duca, a Nete, Conferindo se as arruelas e parafusos, Não foram esquecidas num canto da oficina. Ali estava ele, franzino, idoso, Vasculhando com os olhos o meu rosto, Procurando semelhanças com o meu pai, Morto, com a minha mãe e avós, mortos; Ele já havia passado por todos, E restava apenas vê-los em mim. Ali estava ele, pouco mais de um Ano do último encontro, Quase irreconhecível pelas rugas, Na frieza e o abandono do esquife. Finalmente voltaria a ver os amigos,
  153. 153. 153 Não mais era preciso esquadrinhar A minha fisionomia, pois agora ele, Num suspiro de alívio, os encontraria. Teria eu, contudo, que o deparar, Assim como sempre buscou, Nos olhares alegres, inteligentes e generosos. Só não sabia se haveria de ver, De novo, A bondade farta, que incansavelmente Abusava.
  154. 154. 154 ENCURRALADO Encurralado, a vergonha bate à porta, como um sinal sem resposta, Uma explicação sem jeito, vazia, inócua, somente o mal a levar- me a efeito, À desonra que não ignoro, e se esconde nos gritos, Mas não abafam a dor que inflige, o sofrimento desnudado, Pois o que fiz divide-me, e as partes colaboram para o temerário, E a lágrima descuidada, não apaga o dito nem o feito anos a fio. O torpor camufla-me; na impossibilidade de encará-lo nos olhos, Desvio-os ao longe, onde não revelem o quanto a minha alma indistinta Pode refletir-se nas águas turvas da bravata, onde a névoa oculta com traços de civilidade A fraqueza moral instalada no pecado, os irmãos siameses, A levar-me ao abandono, ao digladiar insano contra Deus.
  155. 155. 155 O vexame diante da verdade, a olhá-la de esguelha, a esperar o descuido, Para tomar as rédeas daquilo de mais sórdido construído. É o canto esmaecido do pardal, a resposta que não vem à tona, Solapada em toneladas de impurezas, A desculpa é o favor que me concede continuar por tudo o que passei e não remediei, O que para trás ficou, segue-me adiante, a fazer-me pior do que fui um dia, E a chuva a encharcar-me não lava a sujeira e o odor fétido a cobrir-me, No qual me atolo como um barco encalhado, no refúgio de não poder livrar-me, Não há como soltar-se sozinho, não há força nem movimento útil, Apenas é-se capaz de ir mais rápido ao fundo, qual objetivo alcançado, Restando o grito de desprezo a soluçar em gorgulhos, O afogar-se no inútil esforço, o descontrole de não ter o escape, É a desculpa para insistir nos erros. Já senti isso muitas vezes, passei por isso outras tantas,
  156. 156. 156 Basta seguir o mal levianamente, e ele nos levará a imolar até mesmo o que não temos, É-nos emprestado, será cobrado com juros, e nos deixará nu como terra assolada, Nem mesmo as cinzas perdoarão, enquanto reviro-me no mover contra Ele, Pois não é possível o mundo me absolver, se está a cumprir sua própria pena. A evasiva não passa de pilhéria, é o medo de não parar até ser arrancado e posto no patíbulo... O silêncio é o risco assumido, o perigo que não se acaba.
  157. 157. 157 FINIS Deram-lhe o rifle, e olhou para ele inculcado, Deu de ombros, e disparou atabalhoado, Em cem direções, em nenhuma especifica, Onde a bala acertar, esse é um bom alvo. Pode ser na mulher a caminhar distraída, Ou na criança a rolar a bola pelo chão, Nem sempre cortará o vazio e cairá inerte sem vítima, Mas quantos mortos valerão para que não erre? Tanto faz se o céu estiver azul ou a noite sem luar, Tanto melhor se na chuva, tanto melhor se no seco, Na cidade, no campo, no espaço, tanto faz; Entre amigos ou inimigos, Inocentes e culpados, Os brancos pagarão pelos pecados dos negros, Que serão absolvidos pelos brancos, E amarrados uns aos outros, esperarão diante dos fuzis. Não é isso o que ele quer, Nem outra coisa pode ser, Qualquer motivo vale o alvo, Seja o que for qualquer. Só há uma vontade, que não sabe sê-la, Esvaziar o pente, e recarregá-lo.
  158. 158. 158 Perdeu-se ao tentar se achar, ou achou-se onde se perdeu? Como uma galinha ao botar o ovo não saberá o que fazer depois? Ou o colibri olhará indeciso a flor? O verme sabe muito bem o que fazer com a morte. Os peixes sabem aonde nadar. Cavalos galopam à frente. O vento não espera a areia se proteger para levá-la em redemoinho. Há o gatilho preparado, e um dedo desnorteado a apertá-lo. Há um impulso, um refluxo, sem consciência. São olhos hipnotizados, faróis apagados, A luz não os alcança, guia-os a esmo, Não há lembranças, nem propósitos, Há um falso prazer, um descontrole, São mentes inutilizadas, corações descompassados, A esperança não o suscitou, Não há choro nem riso, apenas um esgar diabólico, E quando o soldado sem alvo, Apontou a arma para si mesmo, Ele não suportou o vazio, de não ter onde acertar.
  159. 159. 159 ALERTA Correr da imagem expressa, como fugir da vontade exprimida, de restituir o amor escasso ao corpo débil na tela, de desejar uma razão acusada de transigir o espaço, em fingir estar de acordo na mentira. O segundo estágio é a prova de que os suspeitos, ao subestimar a generosidade, se viram condenados a conhecer todos os disfarces, de ver a missão fracassada não melhorar em nada a opinião de si mesmos, manter intactos os contumazes defeitos. À primeira vista, a surpresa confortável de que o exterior estaria varrido e limpo, e de que o interior seria um lugar para se olhar ao longe, onde os nomes verdadeiros fossem esquecidos e os pedregais aplaudissem os moinhos fumegantes. A queixa não feita foi recebida pelos atos que não lhe diziam respeito, métodos não observáveis de cura eram alertas das almas diligentes dos homens, entre uma e outra oferta de tristeza colorida, não aumentava a expectativa dos doentes, nem apagava os desvios.
  160. 160. 160 Há um número impossível, um mapa de caminhos desconhecidos, uma esperança apoiada no hábito de que algumas promessas tortuosas fossem as palavras objetadas pelos antigos, luz em meio a trevas, a afastá-las das fontes de águas sulfurosas, como leite a escorrer de grandes mamilos. Longos parágrafos não têm fim, cegos deliberadamente recusam-se a ver os conselhos seguros pelos críticos, como cistos restituídos às almas miseráveis. Algum momento ainda não recolhido à prova concreta do fim dos tempos, de que o estágio conclusivo ainda demora, e agora a ocasião está avançada, cada vez mais aquele ardor por arrombar a porta. Deve-se estar pronto. E dispensar parentes e filhos enquanto se dança junto à fogueira, a esperar dividir os compassos no movimento preciso de adiar a última hora.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

?????

Redes Sociail

..