O tamanho da provação que Deus nos dá
Compreensão de Papagaio – Parte final
Às vezes costumo me perguntar o motivo do Espírito Santo exercer o lindo ministério da Consolação entre nós seres humanos (João 14.16, 26; 16.6-7). A meu ver, consolar não faz parte do grupo das principais habilidades das pessoas. Verdadeiramente, é muito difícil proferir palavras que consolem aqueles que estão com o coração aflito, angustiado e triste. Por mais que nos compadeçamos do próximo, trazer-lhe consolo nem sempre (ou quase nunca) será possível.
Certamente, você já deve ter observado que as palavras ditas aos enlutados – “meus sentimentos” ou ainda “meus pêsames” – não servem de consolação a eles. Considero sabias as pessoas que acrescentam: “que o Espírito Santo console o seu coração” às suas condolências. Pois, na realidade, Ele é mesmo excelente naquilo que faz e também o Único capaz de trazer verdadeiro e pleno consolo nos momentos de luto.
Apesar disto, as pessoas sempre tentam consolar umas as outras; e não há problema algum nas tentativas de consolação. Entretanto, existe no meio cristão, mais especificamente relacionado à liderança cristã, uma espécie de “autocobrança” quando se trata de cosolar e de aconselhar o próximo. Nestes casos, acredito sim que resida um problema.
Justamente por acreditar ser necessário ter uma resposta para todas as questões e ter uma palavra de consolo para todas as ocasiões, não poucos líderes colocam o sentimento da pessoa em segundo plano. Pois, nestes momentos, o mais importante para eles é ter uma resposta que cubra tal situação, não se importando com inverdades forjadas pelo senso comum acabarem sendo ditas como se fossem verdades fundamentadas na Palavra de Deus.
Quantas pessoas no mundo já foram “consoladas” com aquela maravilhosa promessa que diz: “Deus não nos permite passar por provações que não possamos suportar?”. Talvez, você mesmo já se sentiu consolado com esta promessa, ou até mesmo já consolou alguém com esta palavra. Porém, se eu te disser que a Bíblia não afirma isto acerca de Deus, você continuará acreditando que Ele não dá ou não permite provação além do que alguém possa suportar?
Mais uma vez, estamos diante de um jargão do cristianismo totalmente fundamentado no senso comum e na aceitação popular. O texto bíblico ao qual essa “repetição” se refere está na primeira carta de Paulo aos coríntios, vejamos: “Não vos sobreveio tentação que não fosse humana; mas Deus é fiel e não permitirá que sejais tentados além das vossas forças; pelo contrário, juntamente com a tentação, vos proverá livramento, de sorte que a possais suportar” (1 Coríntios 10.13).
Para início de conversa, precisamos conhecer e compreender o contexto desta passagem nas Escrituras. Logo no começo deste capítulo, o apóstolo Paulo encoraja os coríntios a observarem o que aconteceu com o povo de Israel quando este foi tentado no deserto, e a tomarem tudo como um exemplo para eles próprios.
Quanto ao povo israelita, o texto diz claramente que: “Deus não se agradou da maioria deles, razão pela qual ficaram prostrados no deserto” (v. 10.5); tendo em vista que, diante da tentação, o povo cobiçou coisas más (v. 6), se tornou idólatra (v. 7), se entregou à imoralidade sexual (v.8), pôs Deus à prova (v.9) e murmurou (v. 10). Esta passagem, além de estar falando sobre pecado, dá nome aos pecados cometidos pelo povo no deserto.
É preciso também notar que o termo “provação” não aparece nesta passagem. Obviamente, o termo não aparece porque nada nesta passagem está se referindo à “provação”, mas a passagem interira refere-se à “tentação”. Sim, as “provações” são completamente diferentes das “tentações”. Substituir estes termos é justamente a origem da terrível inverdade disseminada pelo jargão cristão.
A carta do apóstolo Tiago nos revela um pouquinho sobre o que a Bíblia diz a respeito das tentações: “Ninguém, ao ser tentado diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta. Ao contrário, cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta o atrai e seduz. Então, a cobiça, depois de haver concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, uma vez consumado, gera a morte” (Tiago 1.13-15).
Tentação é sempre algo do mal. Tudo aquilo que nos compele a agir de forma contrária à vontade de Deus pode ser chamado de tentação. Podemos dizer que o objetivo de toda tentação é produzir o pecado. O diabo pode nos tentar, a cobiça do nosso coração também pode nos tentar. Mas, a grande e maravilhosa verdade deste texto, que infelizmente é quase sempre ocultada pelo senso comum, é que nenhuma tentação nos é irresistível.
A passagem alterada e frequentemente utilizada fora de seu contexto para dizer que Deus não nos prova além das nossas forças, na verdade nos diz que Deus não permite que sejamos tentados além das nossas forças. Pois o versículo nos informa que “não vos sobreveio tentação que não fosse comum aos seres humanos; e Deus é fiel...” (v. 13). Sim, Deus é fiel. Entretanto, isso não significa que suportaremos todas as provações que nos sobrevierem. Pelo contrário, pode ser que algumas provas nos sejam insuportáveis.
Existe uma canção gospel bastante famosa na atualidade, que começa exatamente desta maneira: “Eu sei que não há nenhuma provação maior do que eu possa suportar. Mas, estou cansado, Pai...”. Não quero desmerecer a música. Entretanto, como estudioso bíblico, eu não posso ignorar o fato de que canções como esta, além de contribuírem para a proliferação da “compreensão de papagaio” acerca das Escrituras e ocultarem o real sentido do texto sagrado, ainda divulgam uma inverdade sobre o caráter de Deus.
De onde alguém pode saber que não há provação maior do que se pode suportar? É curioso tentar imaginar o que seria uma provação insuportável para pessoas que acreditam que estas não existem, ou que Deus não permite que elas venham a existir na vida de alguém. Quanta ilusão!
A Bíblia está repleta de exemplos de pessoas que não resistiram às provações. Gosto muito do capítulo onze da carta aos Hebreus, no qual a famosa “galeria dos heróis da fé” nos mostra exemplos de homens e mulheres que foram provados das mais diversas maneiras em sua vida. Dentre estes heróis, muitos suportaram, mas muitos não suportaram as provações. Entretanto, todos foram provados e aprovados pelo Senhor (Hebreus 11.32-40).
Quanto aos que não puderam suportar a terrível prova da perseguição, o Senhor declara que eram “homens dos quais o mundo não era digno” (Hebreus 11.38). O próprio apóstolo Paulo, autor do texto utilizado como jargão, afirma: “Irmãos, não desejamos que desconheçais as tribulações que atravessamos na província da Ásia, as quais foram muito acima da nossa capacidade de suportar, de tal maneira que chegamos a perder a esperança da própria vida” (2 Coríntios 1.8).
Como é triste ouvir pessoas religiosas e líderes cristãos “tentando consolar” outras pessoas com palavras que Deus não disse e com promessas que Deus não fez. É triste ver uma multidão de crentes que acredita ter sua fé estabelecida nas Escrituras, quando na verdade sua fé está totalmente fundamentada no senso comum, na aceitação popular e na distorção de diversas passagens que bíblicas.
Você que é estudante de teologia ou estudioso bíblico não pode se deixar levar pelo mais fácil. E é bem mais fácil reproduzir aquilo que se ouviu a vida inteira do que questionar os jargões e pesquisar os reais sentidos dos textos sagrados. Escolhi estes três exemplos, na esperança de despertar o meu leitor para algo que é urgente no cristianismo da atualidade – desconfiança.
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