xmlns:b='http://www.google.com/2005/gml/b'xmlns:data='http://www.google.com/2005/gml/data' xmlns:expr='http://www.google.com/2005/gml/expr'> Vida Cristã: A doutrina da criação e a liberdade cristã

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

A doutrina da criação e a liberdade cristã

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A doutrina da criação e a liberdade cristã


É impressionante a conexão que o apóstolo Paulo faz entre a doutrina da criação e a liberdade cristã, em 1Co 10.25-26. No verso 25 ele diz: “comam de tudo o que se vende no mercado, sem questionamento algum por motivo de consciência”, ou seja, ele autoriza os cristãos de Corinto a comerem alimentos que seriam vendidos no templo pagão, inclusive oferecidos aos ídolos. Isso provavelmente chocaria alguns “cristãos fracos” (1Co 8.9-11) com uma consciência imatura e incerta quanto à prática da liberdade cristã. Alguns deles foram pagãos e idólatras antes da conversão e não entenderiam o envolvimento de seus novos irmãos “fortes” naquele determinado contexto.
O fundamento para a argumentação do apóstolo está no verso 26: “porque do Senhor é a terra e a sua plenitude”, uma citação do Sl 24.1. Fica evidente que, para Paulo, uma boa compreensão quanto à doutrina da criação resulta no bom uso da liberdade cristã. A lógica é a seguinte: porque o Senhor é o criador de toda a terra (26), temos liberdade para aproveitarmos da sua criação (25): “comam de tudo”. A doutrina da criação orienta o uso da liberdade cristã.
Nós cristãos ainda temos dificuldade quanto à prática da nossa liberdade. Talvez a nossa realidade não seja a mesma que a dos coríntios (compra de alimentos sacrificados aos ídolos), mas outras: se podemos ou não ouvir música “secular”; ler livros de autores incrédulos; uso moderado da bebida alcóolica; tipos de roupas; ir ao cinema ou a determinados shows; ter tempo de lazer saudável sem peso na consciência; etc.
Para resolver essa tensão, normalmente cristãos escolhem três caminhos. O caminho do legalismo, fazendo uma lista de coisas “permitidas” e/ou “proibidas”, dependendo da obediência à essas regras para o processo da santificação pessoal. O outro caminho seria o da vida monástica, ou seja, a escolha deliberada por abstinência total ou parcial das coisas criadas em benefício à vida espiritual. O terceiro caminho seria o da libertinagem, o uso desenfreado e obstinado da criação como um fim em si mesmo, buscando a satisfação pessoal nas coisas criadas.
De modo diferente, Paulo nos orienta com pelo menos três princípios quanto a isso:
A criação é boa e deve ser desfrutada com sabedoria. “Comam de tudo”, diz Paulo. A consciência de que “tudo que Deus criou é bom” (1Tm 4.4,5) e que “Deus tudo nos provê ricamente para a nossa satisfação” (1Tm 6.17), serve de fundamento para o bom uso da criação sem culpa.
Do mesmo modo Calvino entendia que abrir mão da criação, dos dons que Deus nos oferece nela, seria negar o próprio criador:
“[…] O que então? Negamos que brilhasse a verdade dos antigos legisladores, que com tanta equidade revelaram a ordem civil e a disciplina? Dizemos que estivessem cegos os filósofos na elegante contemplação da natureza em sua descrição artística? Dizemos que tenha faltado discernimento aos que, pela constituição da arte da discordância, ensinaram-nos falar com razão? Dizemos que fossem insensatos os que, construindo a medicina, dedicaram a nós seu trabalho? O que dizer de toda a matemática? Não a reputaríamos delírios de dementes? Pelo contrário, certamente não sem enorme admiração, poderíamos ler os escritos antigos sobre todas as coisas. […] Enquanto isso, não esqueçamos que esses bens excelentíssimos são do Espírito divino, que, para o bem geral do gênero humano, os dispensa a qualquer um”.[1]
Veja que, para Calvino, o fato do Espírito de Deus estar ativo na criação, deveria fazer com que nós a apreciássemos e nos envolvêssemos nela. No mesmo texto, ele chega a dizer que é uma ofensa ao Espírito desprezarmos os seus dons nas coisas criadas.
É certo que a Trindade está envolvida na criação. O Pai cria por meio do Filho com a organização do Espírito (Gn 1.1-2; Cl 1.15-17; Hb 1.2-3; Sl 33.6). Sinclair Ferguson diz acertadamente que o Espírito embeleza a criação divina, começando no Éden, depois no tabernáculo, no templo e então no clímax da majestade divina – Jesus Cristo. Em todos esses momentos, o Espírito estava envolvido conformando tudo ao caráter e à glória de Deus, ordenando e embelezando a criação.[2] Não só isso, a Bíblia afirma que a Trindade tem prazer na criação, o salmista diz: “alegre-se o Senhor nos seus feitos” (Sl 104.31). E, pelo fato da criação ser importante para Deus, no final da história, ela não será descartada totalmente, mas renovada, “libertada da escravidão” (Rm 8.21).
Tudo isso deveria fazer com que, nós cristãos, tivéssemos grande consideração pela criação e o mundo em que vivemos, gerando em nós um apreço pelo engajamento cultural. Tratar a criação com indiferença, desprezo e até mesmo se abster dela, é certamente uma postura contrária ao do próprio Deus que cremos! Novamente, Paulo diz, “comam de tudo”. Ele valoriza até aquele pedaço de carne vendido em um templo pagão. “É criação divina” diria Paulo, “é para o nosso prazer e deleite”.
Em segundo lugar, nossa liberdade deve ser orientada pelo amor que temos pelos nossos irmãos. Veja que, se de um lado Paulo disse “comam de tudo”, de outro ele diz: “não comam” (verso 28):
“Porém, se alguém disse a vocês: ‘Isto é coisa sacrificada a ídolo’, não comam, por causa daquele que deu a informação e por motivo de consciência; consciência, digo, não a sua propriamente, mas a do outro” (1Co 10.28-29).
Há algo que deve ser levado em conta no uso da liberdade cristã, a consciência do meu irmão(a). Provavelmente, Paulo tem em mente aqui os “fracos na fé”, aqueles irmãos verdadeiros, que ainda não amadureceram no conhecimento bíblico, inclusive na doutrina da criação abordada por Paulo. A luta deles não é contra algum pecado específico, mas contra a própria consciência, essa é a fraqueza! Paulo, portanto, nos ensina que devemos considerar o contexto em que estamos inseridos quanto ao uso da nossa liberdade.
Por exemplo: se você está uma igreja que limita e determina um tipo de roupa para homens e mulheres (ternos e saias), você deveria respeitar a consciência desses irmãos e se privar do uso da sua liberdade em usar outros tipos de roupas na presença deles. Novamente, não é pecado algum vestir jeans e camiseta, mas “por motivo da consciência do outro”, essa liberdade deveria ser repensada e até limitada.
Um outro exemplo seria o contexto da própria igreja local onde eu pastoreio. Somos envolvidos com casas de recuperação em nossa cidade. Esses irmãos que ainda estão se recuperando de vícios, frequentam nossos cultos, células e estão em processo de discipulado. Esse contexto, deve nos alertar e orientar quanto ao uso da nossa liberdade no consumo moderado e público de bebida alcoólica. Por amor a eles, essa liberdade deve ser moderada e repensada, ou como diz Paulo, “se a comida serve de escândalo ao meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-lo” (1Co 8.13).
Nesse ponto, a advertência de Paulo deve ser levada a sério! A linguagem do apóstolo é forte: É possível “destruir o nosso irmão”, “pecar contra eles”, “pecar contra Cristo” e ser “motivo de tropeço” no uso da nossa liberdade (1Co 8.11-12; 10.32). Se a falta de envolvimento na criação é um movimento contrário ao da Trindade, o uso da liberdade para prejudicar nosso irmão é o movimento contrário ao do nosso salvador Cristo Jesus, “que não buscou o próprio interesse, mas o de muitos, para que sejam salvos” (1 Co 10.33). Aliás, é nesse contexto, de uso da liberdade, que Paulo diz: “sejam meus imitadores, como também eu sou imitador de Cristo” (11.1). A nossa liberdade deve servir e não ferir nossos irmãos.
Por outro lado, vale dizer que os irmãos fracos na fé devem reconhecer sua imaturidade e buscar crescimento constante no evangelho para essas questões práticas da vida. Eles devem buscar ajuda aos irmãos de consciência madura. É tanto um pecado o uso da liberdade indevida pelos “fortes na fé” quanto a permanência deliberada na imaturidade dos irmãos “fracos na fé”. A ordem bíblica é: “Cresçam na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo” (2Pe 3.18).
Na vida da igreja essa dinâmica se manifestará de maneira bela e promoverá o discipulado. Os fortes na fé estarão sempre buscando o bem dos irmãos mais fracos, moderando o uso da sua liberdade se necessário for para o bem deles, mas mais do que isso, ajudando-os a crescer em conhecimento bíblico. Por sua vez, os fracos na fé não tropeçarão, e terão paciência e deleite em crescer cada vez mais com seus irmãos mais maduros.
Por último, Paulo nos ensina que o bom uso da criação deve ser um meio para promover a glória do Criador. A tônica é clara:
“Portanto, se vocês comem, ou bebem ou fazer qualquer outra coisa, façam tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
As razões para o apóstolo nos orientar quanto a isso são óbvias. Em primeiro lugar, há a tentação tanto no irmão maduro quanto no irmão fraco na fé de se orgulhar ou autoglorificar no uso ou abstinência da liberdade. Os irmãos fortes tendem a menosprezar os mais fracos e se orgulham no conhecimento adquirido, desdenhando dos fracos. Já os irmãos imaturos, tendem a culpar e condenar os maduros, se colocando no lugar de juízes dentro da comunidade da fé. Portanto, a tentação é real a ambos os grupos. Paulo, em contrapartida, diz que se a escolha for usufruir ou se abster, que seja Deus a razão para tal decisão, não a autopromoção nem a condenação.
Em segundo lugar, podemos ter tanto prazer na criação ao ponto de abandonarmos o Criador. É possível ver tanta beleza na ordem criada e nos distrairmos daquele é infinitamente mais belo! A criação deve ser um trampolim que nos impulsiona para a admiração a Deus, um meio para glorificarmos o Criador, não uma teia de aranha que nos prende em si mesma. Como disse Agostinho:
“Pouco te ama aquele que ao mesmo tempo ama outra criatura, sem amá-la por tua causa.”
Sim, podemos amar a criação e devemos fazer isso, mas faremos isso por que temos uma causa – o Criador está por trás de toda a ordem criada
[1] João Calvino, Institutas, II.2.xiv-xvi.
[2] Veja em: Sinclair B. Fergunson, O Espírito Santo, p. 26-28

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