xmlns:b='http://www.google.com/2005/gml/b'xmlns:data='http://www.google.com/2005/gml/data' xmlns:expr='http://www.google.com/2005/gml/expr'> Vida Cristã: Na estrada com Dante

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Na estrada com Dante

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Na estrada com Dante

O que o poeta medieval católico Dante Alighieri pode ensinar aos protestantes hoje? Muita coisa, para falar a verdade.
A obra-prima de Dante, A Divina Comédia, foi chamada, com justiça, de “um dos livros essenciais da humanidade”. Os milhares de manuscritos antigos remanescentes e edições impressas atestam a sua popularidade em nossa própria era. O tratamento que lhe é conferido pelos artistas, músicos e escritores do mundo pelos últimos 700 anos prova o seu permanente fascínio. Foi traduzida para o inglês inúmeras vezes e regularmente destacada na lista dos melhores livros e melhor poesia do mundo. No início deste ano – que marcou o 150º aniversário de nascimento de Dante -, Rod Dreher publicou um maravilhoso livro, How Dante Can Save Your Life [“Como Dante pode salvar a sua vida”, resenha aqui], meditando sobre o poder do poema para mudar a sua vida.
Embora A Divina Comédia reflita muito claramente a fé católica do poeta e seu mundo medieval, ela aponta para alguns princípios que a Reforma traria para a igreja dois séculos depois. Dante propositadamente escreveu em um estilo simples, que, a despeito de seu assunto altamente espiritual, teria apelo popular. Enquanto a igreja produzia obras em latim, Dante escreveu na sua própria língua. Sua escolha foi revolucionária, assegurando que a obra poderia e seria lida por homens comuns, bem como por mulheres e crianças (que ainda a estudam consideravelmente nas escolas italianas hoje).
Apesar de sua imponência, A Divina Comédia está firmemente fundamentada no arenoso e no mundano. De fato, Dante não usa a palavra “divina” em seu título. Ele simplesmente a intitulou “Commedia”, que por vezes significa uma obra com um final feliz, visto que oposta a algo trágico. (A palavra “divina” foi adicionada por um editor posterior e eternizada através dos anos). Em lançar uma versão ficcional de si próprio como a figura central, A Divina Comédia é profeticamente pessoal, confessional e autobiográfica. Desse modo, ela enfatiza um surpreendente senso moderno de autodeterminação, algo que pressagia o famoso “trabalho ético protestante”. Em sua ênfase na salvação e purificação da alma individual, esta obra do católico Dante antecipa as autobiografias espirituais de puritanos tais como John Bunnyan. A Divina Comédia é uma estória de alguém buscando salvação. Nas próprias palavras de Dante, o propósito do poema é levar os leitores “de um estado de infortúnio para um estado de felicidade”. E enquanto descreve a salvação na vida após a morte, fica claro que Dante pretende que os leitores encontrem vida abundante aqui e agora.
Pensamento poético em espiral
A metáfora da jornada para a vida espiritual transcende a linha divisória entre católicos e protestantes. A famosa inovação poética de Dante, terza rima — três linhas de estrofes ligadas a uma outra por rimas intercaladas (aba, bcb, cdc, e assim por diante) — conduz o leitor passo a passo, impelindo-nos a avançar de uma estrofe para a próxima. E embora o poema seja intrincado e exaustivo, sua nítida organização tripartida em 100 cantos igualmente divididos em três seções (e um canto introdutório) proporciona um pensamento em espiral, porém exato. Alguém pode não saber o que está adiante, mas o pensamento é claramente definido, algo como uma versão mais complexa e adornada da Estrada de Romanos.
De fato, como a Estrada de Romanos, a Divina Comédia abre com o reconhecimento da impotência, uma vez que o peregrino Dante está perdido na floresta enquanto a escuridão cai. Ele encontra três bestas, símbolos das tentações para a sensualidade, o orgulho e a avareza. Então, o poeta romano Virgílio aparece, prometendo conduzir a alma inconstante para o paraíso — mas para chegar lá, eles devem passar pelo inferno. Esta parte do poema, Inferno, prendeu a atenção dos leitores por séculos. É simplesmente um fato da natureza humana e da arte que, para o artista e audiência semelhantes, a queda mostra-se mais atraente do que a santidade.
Na visão de Dante sobre o inferno, o tormento eterno é fruto das próprias ações do indivíduo; o pecado torna-se o seu próprio castigo. Por exemplo, os luxuriosos são arremessados por uma rajada de vento para todo o sempre, os coléricos são encerrados numa luta eterna, os aduladores são atolados em excremento humano, e os feiticeiros, que pretendiam ver o futuro, encaram a eternidade com suas cabeças voltadas para trás. Os famosos nove círculos do inferno de Dante colocam os pecados mais brandos no círculo externo, com os pecados que aumentam em gravidade nos círculos em espiral descendente. A classificação que Dante faz dos pecados oferece insights para nós hoje, uma vez que, de igual modo, tendemos a classificar pecados mais frequentemente de acordo com a tradição cultural do que com a bíblica. Dante retrata a heresia como menos séria do que a sodomia, que é um dos pecados violentos, colocado no sétimo círculo após o suicídio, mas pouco antes da usura. O luxurioso e o glutão (o incontinente) estão no círculo externo, enquanto os sedutores, aduladores e hipócritas (o fraudulento) estão no oitavo círculo. O nono círculo é o lar para os culpados dos pecados de traição: à família, país, hóspedes e, finalmente, benfeitores. É aqui que Judas é encontrado — um pouco antes de Satanás.
Surpreendentemente, Dante prevê o fosso do inferno como preenchido não com fogo e enxofre, mas gelo. Lá, um Satanás monstruoso está preso a seu fundo, abanando as suas asas de morcego para todo o sempre. Ele poeticamente descreve o inferno como um lugar de atrofia e estagnação, em que movimento, crescimento e mudança — que estão sempre disponíveis em vida — não são mais possíveis. Uma vez que os pecadores impenitentes deixam a vida, eles são congelados para sempre em seus pecados. Contudo, o poema sugere, o pecado também nos congela nesta vida.
Fogo purificador
Após descer todo o caminho para o centro da terra onde o inferno está situado, Dante continua fora simplesmente por seguir em frente. Ele emerge na ilha do Monte Purgatório e começa uma subida que finalmente o leva para o paraíso. Embora o purgatório esteja claramente enraizado na doutrina católico romana, Dante o descreve como um tipo de purgação dos pecados que lembra levemente o entendimento protestante da santificação. Em Purgatorio, o peregrino encontra pecadores arrependidos no processo de muda de suas falhas de caráter e limitações, bem como para alcançar um estado purificado condizente com o paraíso. Os círculos do inferno são paralelos a sete terraços ascendentes principais. Os pecados são dispostos na ordem inversa do inferno, com os pecados mais graves da vontade em primeiro lugar, seguidos por aqueles da carne: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, glutonaria e luxúria.
Virgílio, o guia de Dante, explica que todas as ações decorrem do amor natural ou espiritual. A perversão do amor conduz aos pecados dos quais alguém deve ser purificado. Aqui, ele ecoa Agostinho acerca do pecado como amor desordenado, um tema recentemente reavivado por Tim Keller. Ao atingir o último estágio do purgatório, Virgílio declara: “Possuis vontade livre”[1]. A grande revelação da jornada de Dante chega quando ele percebe que todas as limitações são limitações do amor.
Alegoria do Fim
Rico em mito clássico, teologia católica e alusões históricas, a alegoria de A Divina Comédia não é simples e nem sempre correta doutrinariamente. A presença de Cristo no poema — mais apontada no encontro direto do poeta com o mistério da encarnação — é simbólica, não direta. A jornada de Dante lembra só um pouco a Estrada de Romanos. Mesmo assim, o poeta acredita na graça de Deus, proclamando em seu último canto que ela era
Graça abundante, me animando,
Olhos fitar ousei na luz eterna
A visão almejada consumando[2].
A frase “graça abundante” é parte do título da famosa autobiografia espiritual de John Bunnyan, que, séculos após Dante, escreveria a mais conhecida alegoria do mundo, O Peregrino. A alegoria é uma forma literária que imita as etapas da nossa existência física e espiritual enquanto seres humanos. O Peregrino é a perfeita alegoria protestante, em forma e conteúdo.
Mas toda alegoria nos instrui a ler a vida de uma forma que enxerga a verdade espiritual na realidade material, semelhante às parábolas de Cristo. Este é o tipo de exercício intenso que a leitura de A Divina Comédia proporciona e o benefício que os protestantes podem obter ao acompanhar Dante em sua jornada simbólica
[1] Canto XXVII, estrofe 142. Tradução de José Pedro Xavier Pinheiro (1822-1882).
[2] Canto XXXIII, estrofes 83-84. Idem.

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