A Bíblia nos ensina a desobedecer*
*Confesso que o título foi para chamar a atenção. O original era "É lícito desobedecer as leis humanas, quando houver um padrão mais elevado a ser seguido", mas ficaria grande demais. Perdoem minha falta de criatividade.
Neste blog, procuro abordar os mais diferentes temas, mas alguns acabam sendo ampliados, como é o caso deste pequeno artigo. Em 2013, escrevi sobre A importante diferença entre legalidade, moralidade e licitude. Já em 2014, fui além e comentei sobre que Nem sempre é um pecado desobedecer o governo. E hoje continuarei, demonstrando que o mero seguir das Leis humanas, não pode ser considerado um sinônimo de bom cristianismo.
Se por um lado o interesse na Bíblia é algo excelente e digno de louvor, por outro algumas pessoas têm confundido e entendido errado algumas passagens, como o famoso capítulo treze do livro de Paulo aos crentes em Roma. O famoso trecho invocado é este: "Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação" (Rm 13.1-2).
Segundo aqueles que defendem uma obediência total às leis do homens, desde que não firam diretamente a lei de Deus, se existe uma regra de conduta no Código Civil (CC), por exemplo, quando o cristão o desobedece, ele peca.
Num caso prático, nosso CC assim preconiza: "Art. 1.284. Os frutos caídos de árvore do terreno vizinho pertencem ao dono do solo onde caíram, se este for de propriedade particular." Por essa lógica, de acordo com estas pessoas, se o "dono" da árvore não quiser deixar o vizinho pegar os frutos que caem na propriedade do mesmo (porque o galho se estendeu até lá), estaria pecando, pois o CC diz que "pertencem ao dono do solo onde caíram" e desobedecer isso seria um pecado. Não importa o que aconteceu na construção das casas, no plantio das árvores... Nada importa. Se está escrito é para ser cumprido na literalidade.
Todavia, o erro de tais pessoas é não entender (por não ter estudado Direito ou não estar familiarizado com ele e a Bíblia) que as leis são uma construção social e que visam estruturar a vida em sociedade, buscando (em tese) uma vida pacífica, saudável e segura para todos. Quer dizer, de acordo com tais pessoas, invocando Rm 13.1-2, todos devem se sujeitar aos poderes superiores, porque eles foram investidos de tal honra por Deus e uma vez que eles criam as leis (seja o legislativo ou o judiciário, aqui entendido na forma de que as decisões, as vezes, devem ser cumpridas pelos demais entes e aí adquirem força de lei), as tais devem ser obedecidas.
Quer dizer, não podemos imaginar que todo o crente deve obedecer cegamente as autoridades, pura e simplesmente porque foram ordenadas por Deus, pois quando o apóstolo escreveu isso, certamente não tinha em mente o poder romano como um exemplo a ser seguido e com isso estava dizendo que os crentes em Roma tinham um governo justo e que incentivava o bem. Ora, nos versículos seguintes ele diz: "Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal" (Rm 13.3-4).
O governo romano não sabia distinguir o que era bom ou mau, de acordo com a vontade de Deus. Lembremos que Jesus foi morto, porque Barrabás foi solto, o que era uma prática em vigor naquele momento. Isso significa que aqueles romanos estimularam a paz em Jerusalém ou estariam contribuindo para a paz onde os crentes viviam? É claro que não. Assim é que devemos entender: em Romanos, capítulos treze, Paulo dá uma descrição sobre o que o governo deve ser, e não um relato do que o governo era naquela época, pois é fato consumado que ele era muito, mas muito aquém daquilo que deveria ser.
Dito isso, quero ilustrar com um exemplo próprio. Ainda na época da faculdade, um colega me disse que no escritório onde trabalhava, estavam defendendo um homem que tinha contraído financiamento para pagar seu caminhão, mas não estava conseguindo cumprir com o pagamento das parcelas, por uma série de razões econômicas, familiares e coisas da vida. O homem não deixara de pagar por malandragem, e sim que realmente não estava conseguindo. Certo dia, então, o oficial de justiça ligou para o escritório dele e disse que estava próximo do caminhoneiro e que iria pegar o caminhão, pois havia um mandado de busca e apreensão. O advogado, então, pediu um tempo para o oficial, pois o dono do caminhão estava justamente indo fazer uma entrega e o dinheiro recebido seria usado para quitar a dívida. Resultado: o oficial de justiça não apreendeu o caminhão, o homem fez o frete e conseguiu pagar ou quitar parte da dívida (e seguir pagando), podendo continuar a trabalhar.
Lembro-me que à época do relato, fui veemente contra a atitude do oficial de justiça, pois dizia eu que ele não tem que "dar uma segunda chance" para quem está em atraso; quem deve, deve pagar e ponto final, pensava. Porém, passado alguns anos, voltei a analisar o ocorrido e compreendi a boa moralidade que o oficial de justiça teve, ao descumprir a lei (regimento, código de conduta, não importa - uso lei no sentido de obrigação) e permitir que o caminhoneiro conseguisse seguir adiante e depois honrar com sua palavra e efetuar o pagamento devido.
Vejam que pera mera legalidade, o oficial agiu errado. Pela letra fria e sem sentimentos, não se deve ser flexível com coisa alguma, doendo a quem deve sofrer. Mas a Bíblia nos ensina a misericórdia e inclusive nos mostra que as vezes o descumprimento da lei é compreensível, tendo em vista de um bem maior: "Não tendes lido o que fez Davi, quando teve fome, ele e os que com ele estavam? Como entrou na casa de Deus, e comeu os pães da proposição, que não lhe era lícito comer, nem aos que com ele estavam, mas só aos sacerdotes?" (Mt 12.3-4)
Pela Lei de Deus (moral, cívica e sacrificial), Davi violou uma regra do Estado de Israel. No tocante aos sacrifícios, ele não poderia entrar no tabernáculo e comer os pães, nem os que estavam com ele. Notemos, entretanto, as palavras de Jesus ao se referir a este incidente: "Mas, se vós soubésseis o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício, não condenaríeis os inocentes" (Mt 12.7). Cristo não estava defendendo a ideia de que a lei pode ser constantemente violada e que o importante é sempre agir com misericórdia. Urge, no entanto, a necessidade de se entender que a lei literal é um padrão que em determinadas circunstâncias, pode ser desobedecida, para se dar vida a sua finalidade, porque "a misericórdia triunfa do juízo" (Tg 2.13).
Relembremos que toda lei possui um alvo maior, além do que as palavras podem expressar. No caso da árvore que fica em linhas divisórias, a finalidade é a bondade para com o próximo e o repartir daquilo que a natureza dá, sem discussões sobre algo tão pequeno, quando comparado com outras coisas. No caso do oficial de justiça, a finalidade da ação de busca e apreensão é o pagamento da dívida, mas e quando existe uma outra possibilidade no meio do caminho e que brevemente sanará o problema? Por que não desobedecer a lei, a fim de cumprir o justo objetivo dela, ainda que de uma maneira não literal? No caso de Davi, a finalidade dos pães era suprir e nutrir os sacerdotes, mas e se outra pessoa estivesse morrendo de fome, especialmente Davi e seus homens (1Sm 21.6)? Seria lícito deixar um pedinte ir embora, apenas porque pela formalidade da lei, os pães não eram destinados a eles?
Assim sendo, querido leitor e se você for crente, de maneira especial, peço que tenha um pouco mais de humanidade bíblica em seus juízos e não creia que o mero seguir das leis estabelecidas pelos homens, dignifique alguém ou seja um demonstrativo de excelente cristianismo. Seguir a lei de Deus e as leis dos homens é muito mais do que cumprir, muitas vezes, uma literalidade.
Que Deus os abençoe.
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