Daniel Doriani 17 de Julho de 2014 - Teologia Geral |
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A Importância de uma Exegese Correta
Um estudioso da Bíblia entra na cozinha de um amigo e vê um imã fixando um plano de dieta na porta da geladeira. O plano diz: “’Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês’, diz o Senhor, ‘planos de fazê-los prosperar e não de lhes causar dano, planos de dar-lhes esperança e um futuro’” (Jr 29.11 NVI). Esse amigo em dieta está interpretando a Bíblia corretamente? O primeiro princípio da interpretação é “leia contextualmente”. O estudioso da Bíblia pensa consigo mesmo: “Ele sabe que Jeremias falava aos líderes de Israel que estavam no exílio na Babilônia? Que uma palavra falada à nação de Israel não é necessariamente uma promessa pessoal a cristãos individuais?” O estudioso se preocupa: “Meu amigo pensa que Deus prometeu prosperá-lo através desse plano de dieta?” Ou o treinamento do estudioso o deixou louco? “Talvez meu amigo simplesmente queira lembrar que Deus é por seu povo”, o estudioso pensa, “inclusive por ele mesmo”.
Nós confessamos que a Bíblia é a Palavra de Deus, mas a menos que a leiamos e a interpretemos apropriadamente, nossa confissão é uma mera formalidade. Uma exegese bíblica correta é essencial se esperamos conhecer e agir a partir da verdade bíblica. Uma interpretação correta possui dois elementos: o técnico e o pessoal. Do lado técnico, devemos ler a Bíblia de acordo com a gramática e o léxico da época. Não é suficiente saber o que palavras como carne, aliança, juiz, talento, escravo ou justificação significam hoje; nós devemos saber o que elas significavam naquela época. Em segundo lugar, devemos ler o texto em seus contextos literário e cultural.
A frequente ordenança “saudai uns aos outros com ósculo santo” (Rm 16.16; 1Co 16.20; 2Co 13.12; 1Ts 5.26; 1Pe 5.14) ilustra ambos os princípios. No ocidente, nós ingenuamente assumimos que esse beijo é algo para pessoas do primeiro século fazerem, mas não para nós. Mas não podemos simplesmente desconsiderar uma ordenança; nós devemos investigar. Quando fazemos isso, descobrimos que o “beijo” se tratava de um toque ritual de bochechas, não de lábios, e que era sempre de homem para homem ou de mulher para mulher, não de homem para mulher. Culturalmente, o beijo demonstrava amizade, afinidade e afeição. Portanto, para obedecer a ordenança em nossa cultura, nós avaliamos como nós demonstramos lealdade e afeição, e praticamos isso. A exegese correta descobre que o beijo em si não é a preocupação de Paulo. Ao invés disso, ele deseja que os crentes demonstrem lealdade e afeição de formas que possam adequar-se a cada cultura.
Leitores sérios possuem uma pergunta tríplice a respeito da interpretação bíblica: o que significava, o que significa e como isso se aplica? A pergunta é ainda mais urgente quando discípulos perguntam: quando eu interpreto uma afirmação literalmente e quando eu a interpreto de forma figurada? Quando devemos obedecer uma ordenança literalmente e quando não devemos? Nós respondemos essas questões estudando uma passagem em seu contexto cultural.
Tome, por exemplo, a questão de cobrir a cabeça e dos cabelos longos das mulheres (1Co 11.2-16). O véu é uma questão em si mesmo ou é um sinal de alguma coisa? Tradicionalmente, muitos cristãos tomaram a prescrição do véu como permanentemente obrigatória. Mesmo hoje, muitos insistem que o princípio permanente da autoridade masculina no lar significa que as mulheres devem cobrir as suas cabeças na igreja. Outros, contudo, argumentam que cortes de cabelo variam imensamente entre e dentro de culturas, e carregam pesos simbólicos variáveis. Os primeiros presidentes dos Estados Unidos usavam perucas e, até 1915, a maioria possuía pêlos faciais proeminentes. Retratos greco-romanos mostram que mulheres respeitáveis cobriam seus cabelos e os deixavam presos, não soltos. Hoje, mulheres casadas piedosas perguntam como sua aparência pode demonstrar respeito por seus maridos.
Uma segunda maneira de compreender o significado e a aplicação da Bíblia é seguindo a progressão de pensamento em uma passagem. Por exemplo, uma mulher certa vez disse a Jesus: “Bem-aventurada aquela que te concebeu, e os seios que te amamentaram!” (Lc 11.27). Esse louvor à mãe de Jesus parece estranho, mas naquela cultura as pessoas acreditavam que mulheres podiam encontrar grandeza ao dar à luz um grande filho. Ela pretendia bendizer Jesus ao bendizer Maria. A resposta de Jesus é intrigante: “Antes, bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam!” (v. 28). O termo antes sugere que Jesus pretende gentilmente corrigi-la. Antes significa “sim, mas há mais”. O elogio dela é louvável, mas ela sutilmente diminui o sexo feminino ao assumir que uma mulher encontra grandeza através da ligação com um grande homem. Embora isso não seja inteiramente falso, uma mulher encontra verdadeira grandeza ao se tornar um fiel discípulo. Nesse caso, a exegese correta exige recursos. Qualquer comentário cuidadoso vai abordar os fatores culturais em Lucas 11. Dicionários bíblicos e enciclopédias bíblicas também são grandes auxílios.
Uma exegese adequada neste caso também requer que observemos a sutil mudança marcada pela palavra antes. Leitores cuidadosos prestam atenção em termos que significam uma mudança no pensamento. Quando uma passagem contrasta ideias, tira conclusões ou faz concessões, nós frequentemente vemos termos como mas, ou, ademais, ainda, visto que, pois, porque, então, portanto, a fim de que, e muito mais.
O discurso bíblico frequentemente deixa o ponto principal claro ao colocá-lo primeiro ou por último em uma passagem, ou repetindo-o (Sl 103.1-2; Tg 2.17, 20, 26). Mas devemos ler cuidadosamente para ver como a passagem alcança ou desenvolve o ponto principal. Por exemplo, o tema de Romanos 3.21-4.25 é a justificação pela fé somente, mas a função de 4.1-8 não é imediatamente óbvia. A frase é assim também que Davi declara (4.6) mostra que há alguma conexão. Uma reflexão demonstra que a conexão é: sabendo que aquela única declaração a respeito da justificação pela fé não será suficiente, Paulo ilustra seu ponto através dos heróis da fé, Abraão e Davi. A lição: nem mesmo Abraão, com suas incríveis ações, foi salvo pelas obras. E mesmo Davi, com seus terríveis pecados, foi perdoado e justificado pela fé. Se esses dois são justificados pela fé somente, todos os crentes são.
Nós temos muitos livros excelentes sobre métodos de estudo bíblico. Juntos eles respondem nossas perguntas comuns. Por exemplo, quando lemos história, deveríamos preferir a interpretação literal da Escritura, em que um monte é um monte. Ainda assim, o ensino de Jesus e dos profetas irrompe em metáforas, hipérboles e ironias. Jesus fez perguntas profundas esperando respostas, enquanto se recusava a dar uma resposta direta para metade das perguntas que lhe faziam. Jesus interpretou algumas parábolas (Mt 13.3-43), mas nos deixa tentar decifrar outras (v. 37). Semelhantemente, o Apocalipse ocasionalmente oferece dicas a respeito da interpretação apropriada de seus símbolos (por exemplo, Ap 12.7-12).
Moisés e Paulo possuíam um estilo linear e proposicional, mas Jesus e a maioria dos profetas amam poemas, parábolas e analogias que nos prendem com sua vivacidade, ou sua estranheza, e nos convidam a pensar. Quando nós os lemos, um monte pode ser um lugar de rebelião. Nesse sentido, Jeremias 51.25 chama a Babilônia, uma cidade localizada em uma vasta planície, de um “monte que destrói”. Semelhantemente, enquanto a maior parte das narrativas enunciam imediatamente a mensagem, outras se esticam por páginas sem fazê-lo. Se mantivermos a atenção no estilo ou no gênero de cada livro, essas coisas se tornam claras. Em sua sabedoria, Deus escolhe nos entregar verdades básicas como “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). Mas ele nos deixa lutar para entender outros princípios.
Ocasionalmente, Jesus escolheu ser enigmático como repreensão àqueles que se recusavam a ouvir a sua palavra ou a prestar atenção aos seus sinais (Mt 13.11-17; veja Am 8.11; Jo 8.45). Ainda assim, a Bíblia não é poesia elitista que pretende causar perplexidade. Deus nos deu a sua Palavra para que crêssemos nele, para que o amássemos pactualmente e para que o seguíssemos. João disse que recontou os sinais de Jesus “para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (Jo 20.30-31).
Conforme consideramos repreensões e fé, nós entramos no ângulo pessoal da interpretação. Os profetas e Apóstolos sabiam que suas palavras encontrariam rejeição e distorção deliberada (Jr 36.23; 2Pe 3.16), não apenas interpretação errônea comum. Portanto, Deus nos diz que se nós lermos a Bíblia corretamente em um nível pessoal, nós o conheceremos e seremos conformados a Ele. Visto que ele “faz misericórdia, juízo e justiça”, nós também deveríamos fazê-lo (Jr 9.24; 22.3). Nós deveríamos nos tornar mais como Deus em nosso caráter e nossas práticas (Rm 8.29; Ef 4.32-5.2).
O ângulo pessoal explica por que a Bíblia, diferentemente de outros livros, nos conta como lê-la. Jesus diz que devemos ler integralmente, procurando por seu sofrimento e glória (Lc 24.25-27; Hb 2.9; 1Pe 1.11). Paulo diz que a Escritura pode “tornar-te sábio para a salvação” (2Tm 3.15). Os Salmos ordenam que o povo de Deus medite na Palavra para encontrar vida (Sl 1; 19; 119). Provérbios encoraja os leitores a valorizar a sabedoria e encontrar bênção (Pv 2.1; 7.1). Tiago 1.22 diz: “Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não somente ouvintes, enganando-vos a vós mesmos”. Paulo diz que devemos ler através do Espírito ao invés da letra da lei (2Co 3.6).
A Escritura também nos fala sobre como não ler. Jesus frequentemente censurou os líderes judeus por lerem a Escritura erroneamente, perguntando: “Não lestes?” (por exemplo, Mt 12.3-5; 19.4; 21.16, 42; 23.31). Jesus não questionou a escolaridade ou os hábitos de leitura deles. Eles liam a Escritura, mas falhavam em compreender o seu significado. Em quatro ocasiões, eles perderam de vista o testemunho de Jesus. Uma vez, eles seguiram a letra da lei e perderam a sua intenção.
Em Mateus 19, os fariseus perguntaram: “É lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” (Mt 19.3). Jesus respondeu, perguntando-lhes se haviam lido que Deus criou a humanidade macho e fêmea para tornarem-se uma só carne (vv. 4-6). Ainda assim, muitos fariseus a liam erroneamente, transformando regulamentos que intentavam restringir o divórcio em bases para facilitar o divórcio. Eles perderam de vista o plano de Deus — que marido e mulher devem permanecer juntos.
Em Mateus 12, os fariseus novamente leram erroneamente quando acusaram Jesus de violar o sábado permitindo que seus discípulos colhessem grãos dos campos enquanto viajavam. Eles não tinham lido como Davi e seus companheiros comeram pão consagrado, o que era ilícito, porque tinham fome (v. 3; veja 1Sm 22)? Se eles tivessem lido a Escritura corretamente, eles saberiam que Deus diz: “Misericórdia quero, não sacrifício” (v. 7; veja Os 6.6). Isso significa que a verdadeira necessidade humana pesa mais do que regulamentos do templo e do sábado. Além disso, “aqui está quem é maior que o templo” (Mt 12.6). Isto é, se sacerdotes têm permissão de servir em um espaço que representa a presença de Deus, então os discípulos podem fazer qualquer coisa que seja necessária para auxiliar Jesus, pois ele é a presença de Deus.
Esses casos de leitura errônea demonstram que a correta exegese exige mais do que métodos apropriados. Não podemos fazer justiça à Escritura a menos que percebamos, como Agostinho disse, que o propósito final da Escritura é aumentar o “duplo amor a Deus e ao próximo”. Cristãos leem bem a Escritura quando buscam isso por si mesmos e pelos outros, e então fazem discípulos de todas as nações (Mt 28.18-20). Que leiamos a Bíblia de tal maneira que nos tornemos “homens fiéis e também idôneos para instruir a outros” (2Tm 2.2).
Tradução: Alan Cristie
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